A melhor série argentina de 2025 começa como Agatha Christie e termina como um soco no estômago Divulgação / Netflix

A melhor série argentina de 2025 começa como Agatha Christie e termina como um soco no estômago

Num mundo em que redes sociais tornaram-se apenas mero pretexto para se destilar ódio; num tempo em que as pessoas fazem questão de manifestar seu desprezo umas pelas outras; com uma humanidade passiva diante do sofrimento que vem da ignorância em sua forma mais crua, a guerra, ainda faz sentido se falar em bondade? O que pensar em se deparando com o fato de que o menino compassivo e ingênuo de ontem transformou-se no pai amargurado e perverso de hoje, que por seu turno cria seus próprios novos tiranos, que hão de dar origem a outros tantos monstros, em escala industrial e sem fim, até que sobre apenas os vermes para contar sua versão da história?

Qualquer um se comove com a história de crianças e adolescentes vítimas de abusos, o foco principal de “Cilada”. Evidentemente, os diretores Miguel Cohan e Hernán Goldfrid dão uma volta imensa para discorrer acerca de um maníaco que passa a rondar uma comunidade pacata de Bariloche, na Patagônia argentina, mas nem tudo é o que parece. Baseada no suspense homônimo de Harlan Coben, de 2010, a adaptação de Cohan e Goldfrid é hábil em descortinar mistérios e paradoxos, mormente nessa fase de descobertas e insurreição, cheia de todas as reviravoltas, bem ao estilo do autor, o novo ai-jesus do streaming.

Traumas como os explorados por “Cilada” têm o condão de perdurar por um tempo que muitas vezes parece inalcançável, até que começam a render memórias incômodas demais, prolongando um sofrimento que se retroalimenta, cresce do que julgávamos morto. O instinto de sobrevivência garante que consigamos resistir a esses corpos estranhos, mas atingido certo limite, o organismo parece que se encarrega de livrar-se de todo aquele lixo, à custa de um sofrimento diferente, rigoroso, que leva à maturidade ou à velhice precoce, a depender da maneira como se captam esses sinais. Em seis episódios, o enredo sai de Nova Jersey para o extremo oeste da Argentina mantendo a essência do que Coben narra e juntando detalhes do novo cenário que não deixam de conferir uma outra definição para a história.

Os lagos glaciais cercados pela cadeia de montanhas da Cordilheira dos Andes de San Carlos de Bariloche tornam ainda mais dúbia a atuação de Ema Garay, a repórter mais famosa de um certo Flagrante, o site de um canal de notícias local especializado na coberturas de casos à primeira vista sem solução. Ema, viúva e mãe de um adolescente, interpretada por Soledad Villamil com o justo equilíbrio entre rigor e fragilidade, pensa ter descoberto o culpado de uma série de crimes sexuais contra garotas da região: trata-se de Leo Mercer, um abnegado assistente social que cai numa armadilha preparada por Ema, que recorre a um jogo interativo para manter contato com o criminoso, e comparece ao local onde uma possível nova vítima o estaria aguardando. 

Cohan e Goldfrid frisam o envolvimento de Ema e Leo, pouco depois que ela conhece a família de uma das meninas seviciadas, aumentando a estranheza diante do que pode sair da tumultuada relação dos dois. Ao lado de Villamil, Alberto Ammann consegue fazer com que seu personagem transite bem entre a suposta vilania e o ar de herói injustiçado de Leo, um dos trunfo dessa corajosa versão audiovisual de um best-seller pouco inventivo. 


Série: Cilada
Direção: Miguel Cohan e Hernán Goldfrid
Ano: 2025
Gêneros: Drama/Mistério/Crime/Suspense 
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.