Na Netflix, o filme com Brad Pitt que ganhou o Oscar, derrubou Wall Street e te faz rir pelos motivos mais errados possíveis Divulgação / Paramount Pictures

Na Netflix, o filme com Brad Pitt que ganhou o Oscar, derrubou Wall Street e te faz rir pelos motivos mais errados possíveis

A aposta mais lucrativa do século 21 talvez não tenha sido feita na bolsa, mas no campo da linguagem — e foi Adam McKay quem a executou com precisão cirúrgica. Em “A Grande Aposta”, o cineasta desfaz o mito do colapso financeiro como tragédia espontânea e entrega ao público um projeto audacioso: transformar o absurdo em método, a indignação em comédia e a catástrofe em coreografia. O filme não é apenas uma sátira; é uma máquina de moer certezas travestida de espetáculo. Sua arquitetura narrativa, baseada na justaposição de núcleos dramáticos que operam com graus variados de lucidez e ganância, é inseparável da crítica estrutural que o impulsiona: um sistema que finge complexidade para justificar a pilhagem. Não há espaço para ingenuidade aqui — apenas uma exposição implacável da engrenagem que transformou a estupidez institucional em técnica de enriquecimento acelerado.

A força do filme não está nos números, mas na forma como eles se desmancham sob o peso das histórias pessoais que orbitam sua trama. Michael Burry, Jared Vennett, Mark Baum e a dupla de jovens investidores guiada por Ben Rickert não são personagens alinhados por uma ética comum — o que os une é o incômodo silencioso diante da dissonância entre os discursos do mercado e o colapso iminente que apenas alguns ousaram enxergar. Suas decisões, longe de heroicas, são movidas por cálculos que misturam lucidez e niilismo. Apostam contra o mundo não por desprezo à miséria alheia, mas por uma estranha compulsão por coerência: não suportam ver uma mentira permanecer intacta. Mesmo assim, quando a verdade se impõe, ninguém comemora. Porque o que vem à tona não é apenas a falência do sistema, mas a constatação de que prever o abismo não impede que se caia com ele.

A corrosão do sistema bancário, convertida aqui em espetáculo pedagógico, não se limita à reconstituição de eventos históricos. O filme de McKay é, acima de tudo, um projeto de exposição. Como um anatomista que ri enquanto disseca, ele torna visível o que os bancos se esforçaram para manter opaco: um emaranhado de operações financeiras deliberadamente indecifráveis, desenhadas para ocultar riscos, transferir perdas e transformar inadimplência em produto exportável. A decisão de recorrer à metalinguagem não é um recurso estilístico gratuito, mas parte de uma estratégia para quebrar a mística técnica da elite financeira. Quando Margot Robbie explica derivativos em uma banheira ou Selena Gomez discorre sobre subprimes em meio a uma partida de blackjack, o que está em jogo não é a simplicidade da linguagem, mas a denúncia da farsa: não é difícil entender — é conveniente que pareça.

Ao evitar a tentação da reconstituição trágica ou do lamento ideológico, McKay atinge um ponto de inflexão raro no cinema: a comédia como forma de revelação crítica. A leveza do filme, marcada por uma edição ágil, diálogos afiados e uma trilha narrativa que não perde fôlego, contrasta com a gravidade das consequências que denuncia. E talvez seja nesse contraste que se esconda a mais precisa das acusações. Ao transformar o colapso financeiro em espetáculo, McKay nos confronta com uma realidade desconfortável: vivemos num tempo em que o horror só mobiliza quando encenado com carisma e ritmo. A indignação pura já não basta — é preciso embalá-la em entretenimento, vendê-la como um produto, articulá-la como um meme. O que “A Grande Aposta” escancara, com sua sagacidade insólita, é que até mesmo a crítica mais feroz precisa respeitar as leis da atenção fragmentada do presente.

Há, por fim, um desconforto irredutível que atravessa o filme como um zumbido inaudível: a impotência de quem sabe demais. Ao contrário das narrativas redentoras em que os heróis desafiam o sistema e saem transformados, aqui o conhecimento não salva — apenas isola. Aqueles que anteveem o desastre acabam esmagados pela própria lucidez, como se a consciência fosse um fardo e não uma ferramenta. Rickert abandona o jogo, Burry desaparece, Baum se fecha no cansaço. Nada disso os impede de enriquecer — e essa talvez seja a ironia final: a fortuna conquistada com honestidade analítica torna-se prova material da falência ética coletiva. Se o filme nos deixa com algum tipo de esperança, ela não está no sistema — está na suspeita. A desconfiança, aqui, é mais do que um reflexo saudável; é uma forma de sobrevivência. E isso, em um mundo que insiste em repetir seus colapsos, talvez já seja um ponto de partida.

Filme: A Grande Aposta
Diretor: Adam Mckay
Ano: 2015
Gênero: Biografia/Comédia/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★