Poucas figuras atravessaram o século 20 com a mesma inquietação vibrante e espírito indomável que Lee Miller. Mais do que testemunha de eventos cruciais, ela foi agente de deslocamento — de papéis, de fronteiras e de narrativas. A ex-modelo transformada em correspondente de guerra não buscava apenas congelar o horror em imagens: queria compreendê-lo, habitá-lo com a intensidade de quem recusava o distanciamento confortável. No centro dessa figura fascinante reside um paradoxo: a mulher que enfrentou as ruínas do mundo não foi, ela mesma, autorizada a desmoronar. A filosofia, que desde a Antiguidade tenta domar o caos interno com a razão, talvez tivesse nela sua exceção mais eloquente — alguém que filtrava a dor por lentes, mas não se permitia filtrá-la em si mesma.
No cinema, a guerra é tema insistente — não por fetiche, mas por necessidade. Ela desafia os limites da representação, exige rigor estético e responsabilidade ética. Mas há um risco constante: o de aprisionar o real em moldes reconfortantes, de perpetuar versões petrificadas da História. A estreia de Ellen Kuras, porém, recusa esse caminho fácil. Com um olhar que não se contenta em replicar convenções do gênero, ela se volta para os interstícios — para os espaços entre a notícia e o trauma, entre o ato de fotografar e o ato de sobreviver ao que se viu. “Lee” não é um inventário de feitos nem um relicário de glórias. É uma travessia íntima por dentro da História, como se o próprio passado se dobrasse para caber na intensidade subjetiva de uma só mulher.
A roteirização a seis mãos — John Collee, Liz Hannah e Marion Hume — parte da biografia escrita por Antony Penrose, filho da protagonista, mas não se detém na cronologia. O que se constrói aqui é uma narrativa que entrelaça memória e afeto, rigor documental e ressonância emocional. Em vez de mitificar Lee Miller, o filme a humaniza até o osso, e é justamente nisso que reside sua força. Ao priorizar momentos de ambiguidade e cansaço, Kuras não evita as contradições da personagem; ela as amplifica, permitindo que o público reconheça ali não uma heroína esculpida, mas alguém dilacerada entre a urgência da denúncia e o silêncio do trauma. A aparição de Penrose no enredo, com seu tom confessional e tênue, não serve como dispositivo narrativo decorativo, mas como vértice emocional: um reencontro tardio entre duas identidades fraturadas pela guerra — a do mundo e a da maternidade.
A imagem icônica de Miller na banheira de Hitler, muito mais do que um símbolo de revanche estética, torna-se metáfora da tensão insolúvel entre intimidade e ruína. A escolha de Winslet e O’Connor para os papéis centrais não apenas sustenta a densidade dramática da trama; ela a acirra. Há uma contenção nas interpretações que diz mais do que qualquer discurso — uma entrega que privilegia o subtexto e oferece ao espectador o privilégio de preencher lacunas. Com seus 117 minutos, “Lee” não busca nos emocionar pelo artifício, mas pelo despojamento de quem entende que narrar o horror exige mais silêncio do que ênfase. E é nesse intervalo entre o que foi dito e o que se cala que a verdade encontra seu espaço mais contundente.
Filmes sobre guerra costumam se fixar no coletivo — nas batalhas, nas vitórias, nas mortes em massa. Este, ao contrário, recusa a escala épica em favor do detalhe íntimo. Ao fazer isso, reconfigura também o lugar da mulher na narrativa histórica. Lee Miller não é uma presença lateral ou um corpo funcionalizado ao drama masculino. É, ao contrário, o olhar que revela, a lente que expõe o que muitos preferiam não ver. Sua existência nos lembra que nem sempre a coragem se traduz em atos grandiosos — às vezes, ela se manifesta no gesto de não desviar os olhos. A câmera, nesse sentido, deixa de ser ferramenta para tornar-se extensão de uma sensibilidade que recusa a anestesia moral.
Se o cinema ainda serve a algo além do entretenimento, é para sustentar esse tipo de memória: a que não pede licença para existir, mas exige permanência. Ao retratar uma mulher que esteve onde muitos não ousariam pisar, Ellen Kuras não apenas resgata uma biografia notável. Ela propõe uma ética do olhar — uma forma de estar no mundo que reconhece a violência sem estetizá-la, que enfrenta a dor sem consumi-la como espetáculo. E, sobretudo, que entende que há histórias que só podem ser contadas quando a lente se volta, enfim, para quem a empunha.
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