Criador de uma mitologia literária que conjuga ficção científica, terror e fantasia, cada vez mais presente e influente em literatura, música, quadrinhos, RPGs e cinema, Lovecraft foi o grande sucessor de Edgar Allan Poe, influência e inspiração para muitos dos escritores de literatura fantástica posteriores. Objeto de estudo e especulação de escolas do ocultismo, o autor foi um verdadeiro mito capaz de se propagar em uma era tecnológica.
São muitos os rótulos dados a H. P. Lovecraft, escritor norte-americano de vida breve e conturbada, tachado de excêntrico, recluso, estranho. Acima de tantos epítetos baratos está sua obra literária, base de um subgênero completo da literatura fantástica conhecido como “horror cósmico”, que apresenta um cosmo indiferente, senão hostil às pretensões narcisistas da humanidade, retratada em seu universo ficcional como um evento fugaz, espécie desprezível a serviço de seres muito mais poderosos e ancestrais.
Se é a literatura que importa, muito mais que distorções e lendas exageradas, segue uma modesta introdução à sua obra, uma lista de dez de seus contos mais significativos, para o conjunto da própria obra e para a arte fantástica contemporânea como um todo.
O monstro com cabeça cefalópode e corpo humanoide alado tornou-se um ícone da onipresente cultura pop. Cada vez mais citado e comentado, sua sugestiva e assustadora imagem é usada e distorcida de inúmeras maneiras em todas as formas de arte e comunicação de massa. A importância desse conto, que se vale com maestria de diversas vozes narrativas, está na introdução a Cthulhu, que preside o panteão das divindades alienígenas na mitologia artificial criada por Lovecraft.
Narrativa das mais longas dentre os contos por ele escritos, essa história de terror desenrola-se em Arkham, a sinistra cidade fictícia que reúne tudo de assustador e enigmático que Lovecraft viu e experimentou nas paisagens de sua Nova Inglaterra natal. Um conto moderno por excelência, conjuga à perfeição imagens e lugares comuns do tema bruxaria, utilizados com virulência inaudita, a conceitos de ficção científica sobre hiperespaço e viagens dimensionais.
Um lugar comum sobre o ‘cavalheiro de Providence’ é nomeá-lo renovador dos temas e imagens da literatura gótica, afirmação um tanto superficial e apressada por conferir demasiado destaque a essa vertente de sua obra, e que já se tornou dogma entre os não iniciados. Trata-se de um dos únicos contos em que o autor realmente avança sobre essa tradição tão cara à literatura de terror, e realmente a renova, obtendo grande efeito.
Lovecraft, no início de sua produção literária, sofreu forte influência de Lord Dunsany, autor inglês de fantasia muito influente na primeira metade do século 20. De fato, boa parte das narrativas dessa fase está impregnada do estilo, imagens e sabor ‘dunsanianos’: profusão de descrições exuberantes, o estilo elaborado da narrativa, cenários totalmente imaginários e repletos de um clima sobrenatural aterrador e deslumbrante.
Passado em Providence, cidade natal do escritor, compõe uma espécie de brincadeira entre ele e o amigo Robert Bloch, outro importante escritor de horror e sobrenatural: este criou uma narrativa em que uma personagem baseada em Lovecraft morre. Por sua vez, o criador de Cthulhu baseou o protagonista deste conto em Bloch e o leva a uma jornada através de uma construção amaldiçoada por uma seita maldita, um objeto macabro repleto de poder e entidades cósmicas medonhas.
O fato desse conto ter sido escrito sob encomenda para o famoso mágico e escapologista Harry Houdini (que assinaria o texto como relato autêntico de uma aventura que teria vivido no Egito) tornou-se anedótico, a ponto de muitos leitores não darem a devida atenção a essa grande peça fantástica, cuja tensão e horror crescentes, assim como a impressionante cena da aparição das entidades mitológicas egípcias se anunciam de modo sub-reptício na aparentemente simples frase inicial: “Mistério atrai mistério”.
Um estudo sobre os poderes da música (e da arte em geral) como forma de alterar a percepção da realidade e o desejo de evasão do mundo prosaico, esse conto é um dos mais sugestivos, sutis e perturbadores de Lovecraft. A história se passa, presumem os leitores mais fieis e os pesquisadores, em Paris, e destaca-se pela construção cuidadosa da presença do sobrenatural no decorrer da narrativa.
Talvez o mais filosófico e reflexivo dos contos do autor, seu protagonista é um dos mais marcantes criado pelo autor, o explorador do universo dos sonhos Randolph Carter, muitas vezes considerado um alter ego do escritor. Os acontecimentos da narrativa são meros instrumentos para Lovecraft desfiar suas ideias sobre criação artística, vida social, negação da vida mundana e busca pela verdadeira identidade.
Baseado em teorias antropológicas superadas, o que em nada prejudica a força de sua narrativa, este conto, por alguns considerado um poema em prosa, parte de um tema muito caro ao autor – o retorno à localidade em que as raízes mais autênticas e profundas do ser humano descansam e o aguardam — para construir uma espiral de temas fantásticos e lendários recriados e ampliados com a intensidade típica de Lovecraft.
Uma das narrativas inaugurais da assim chamada fase madura da obra de Lovecraft, iniciada em 1917, esse conto permanece entre seus mais importantes por méritos além da prosa mais elaborada e convincente: busca por plausibilidade científica para seres e cenários e antecipação de temas explorados em narrativas posteriores, como um sítio remoto e macabro, o leito oceânico como fonte de mistérios repelentes.
A influência e a popularidade da obra de Howard Phillips Lovecraft aumentam sem cessar, há quase quarenta anos. No Brasil seus textos são publicados desde o fim dos anos 40, mas somente a partir da década de 80 começaram a surgir edições mais ou menos bem cuidadas e regulares.
Comprovação de como sua obra se consolidou no imaginário do público brasileiro apreciador do fantástico é a recente publicação de uma das edições mais completas dedicadas ao autor, que reúne todas suas narrativas curtas (os 61 contos uniautorais) anotadas e traduzidas para o português: Contos Reunidos do Mestre do Horror Cósmico (Editora Ex Machina, 2017) apresenta as histórias organizadas por ciclos, além de contar com introdução assinada pelo pesquisador estadunidense S.T. Joshi, maior especialista na obra de Lovecraft, e um extenso aparato crítico de ensaios, filmografia e bibliografia crítica, elaborado pelos principais pesquisadores brasileiros da vida e obra do autor.
Caio Alexandre Bezarias é professor de língua portuguesa, escritor e pesquisador de literatura fantástica. É autor de A Totalidade pelo Horror: O Mito na Obra de Howard Phillips Lovecraft.