É possível amar alguém que você teme? E se esse alguém for o próprio filho, gerado entre promessas de futuro e expectativas ingênuas de que o amor bastaria? Há perguntas que nos obrigam a descer ao porão das certezas cotidianas, onde tudo aquilo que parecia evidente se revela precário, vulnerável, perigoso. A ficção, quando se atreve a enfrentar essas zonas sombrias da existência, deixa de ser mero entretenimento e se transforma em campo de batalha para dilemas íntimos, sociais e morais. E quando isso acontece com a precisão cirúrgica de “Adolescência”, o incômodo é inevitável — e necessário.
Há quem ainda enxergue a parentalidade como missão sagrada, incontornável, atribuindo à procriação uma espécie de redenção automática. Mas o que se faz quando o filho esperado se transforma em catalisador do horror? A série britânica concebida por Jack Thorne e Stephen Graham opera justamente nessa interseção entre afeto e terror. Não há espaço para panfletarismo nem para verdades fáceis. O que vemos é um drama policial que começa como crônica de bairro e lentamente se desdobra em tragédia íntima, sob direção meticulosa de Philip Barantini, que desmonta qualquer desejo de respostas rápidas com sua câmera que se recusa a piscar.
Logo no início, o espectador é lançado ao olho do furacão: um crime brutal cometido por um adolescente aparentemente inofensivo. Yorkshire, com sua serenidade pastoral, não está preparada para o que está prestes a acontecer. O detetive Luke Bascombe (Ashley Walters em atuação exemplar) é convocado para prender Jamie Miller, de treze anos, suspeito de matar uma colega de classe. A narrativa opta por uma abordagem quase documental: sem trilha emocional, sem grandes reviravoltas, apenas a escalada gradual de uma perplexidade que nos engole. Não há necessidade de tornar os fatos mais dramáticos; o real já é suficientemente devastador.
As decisões formais — como a insistência nas tomadas longas e nos planos fechados — não são exibicionismo, mas instrumentos que favorecem o incômodo. Barantini entende que o peso não está nas palavras ditas, mas nos silêncios, nos gestos interrompidos, nos olhares vazios. Ao invés de se precipitar, a série se permite investigar a espessura do não dito, o estranhamento entre pais e filhos que dividem o mesmo teto e, ainda assim, permanecem estrangeiros uns aos outros. Cada episódio acentua a sensação de desmoronamento, como se os alicerces de uma casa fossem sendo corroídos por dentro, tijolo por tijolo.
A cena em que Jamie é confrontado com as imagens de segurança, revelando seu envolvimento no crime, é exemplar pela contenção. Não há gritos, nem revelações escandalosas, apenas a constatação muda de que o inimigo, por vezes, dorme sob nosso teto. O roteiro não busca nos convencer da culpa ou inocência do garoto, mas nos força a encarar o que significa conviver com alguém que se desconhece. E é justamente essa ambiguidade — essa recusa em categorizar o protagonista como monstro ou vítima — que confere densidade incomum ao projeto.
O elenco está afinado em cada nuance. Ashley Walters compõe um Bascombe que transita entre o profissionalismo do investigador e a inquietação de quem também tem filhos em casa. Christine Tremarco entrega uma Manda que não compreende o que se quebrou — nem quando — no vínculo com o caçula. Mas é Owen Cooper, no papel de Jamie, quem mais desafia expectativas. Sua atuação é uma dança entre o apelo emocional e o desconforto ético. Há momentos em que queremos protegê-lo, outros em que preferiríamos não vê-lo mais. Essa oscilação entre empatia e repulsa é o que sustenta a tensão emocional da série até seu ponto de ruptura.
O episódio final, ancorado numa conversa entre os pais sobre as lembranças da filha assassinada e o que restou do filho agressor, funciona como síntese pungente de tudo que veio antes. Não há consolo possível, nem catarse libertadora. Apenas a devastação compartilhada por dois adultos que, um dia, acreditaram que estavam construindo uma família. Diante disso, a pergunta inicial reverbera com ainda mais força: é possível amar quem se teme? E o que fazemos quando descobrimos que não temos a menor ideia de quem são aqueles que colocamos no mundo?
Série: Adolescência
Criação: Stephen Graham e Jack Thorne
Direção: Philip Barantini
Ano: 2025
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 9/10