Indicado a 3 Oscars, o épico de Ridley Scott com Joaquin Phoenix já está no Apple TV+ — e é grandioso em todos os sentidos Divulgação / Columbia Pictures

Indicado a 3 Oscars, o épico de Ridley Scott com Joaquin Phoenix já está no Apple TV+ — e é grandioso em todos os sentidos

Ridley Scott não realiza filmes; ele finca bandeiras em terrenos onde a maioria hesita em pisar. Aos 87 anos, segue insubmisso à modéstia e fiel a um cinema de proporções que não se contenta em narrar grandes feitos: pretende ressignificá-los. Seu “Napoleão” é menos uma biografia que um embate direto com a mitologia do poder. Ao eleger Bonaparte como personagem central, Scott não apenas reencena o percurso de um tirano fascinado por sua própria lenda, mas se empenha em decifrar o abismo entre o homem e a caricatura imperial que ele mesmo cultivou. Não há reverência, tampouco demolição gratuita. Há, sim, a dissecação fria de um sujeito que atravessou continentes e afetos com o mesmo ímpeto destrutivo — e com a mesma convicção de que tudo lhe era devido.

Desde os primeiros minutos, a brutalidade assume a dianteira. O cerco de Toulon, episódio inaugural de sua ascensão, é conduzido como uma coreografia do caos: lama, morte e estratégia. A câmera não enaltece o jovem capitão, mas o cerca de cadáveres e decisões duvidosas. O sangue que mancha seu uniforme precede as medalhas, e esse detalhe não é acidental. A glória, em Scott, é sempre consequência de algum grau de podridão. A guerra, portanto, não é um cenário, mas a lente pela qual o filme lê cada movimento de Napoleão — inclusive os íntimos. A vida amorosa do general, longe de aliviar essa violência, a traduz em outros códigos, igualmente cruéis.

É nesse ponto que Josephine se impõe como figura incontornável, não por ser um freio, mas um espelho. Viúva, sobrevivente e estrategista à sua maneira, ela ocupa um lugar ambíguo entre o desejo e o cálculo, entre a devoção e o ceticismo. Vanessa Kirby recusa qualquer leitura redutiva da personagem e opta por construí-la como uma presença que desafia o imperador mesmo na entrega. Há momentos em que ela parece atuar para a História, inflando sua própria relevância; noutros, entrega-se a um desamparo inquietante, como se intuisse que sua permanência no trono dependia mais da fertilidade do que do afeto. E o filme, inteligentemente, não oferece respostas fáceis — apenas insinua que, no coração do Império, o amor também se converte em arma.

Scott não poupa tempo com explicações. Prefere sobrepor batalhas e missivas, alianças e traições, coroações e humilhações. O enredo avança como se corresse contra o relógio de uma bomba ideológica, enfatizando o quanto Napoleão foi produto e produtor de um tempo que se devorava em ciclos de revolução e restauração. A queda de Robespierre, o fuzilamento dos rivais, a efemeridade das alianças políticas — tudo é atravessado por uma lógica que o filme evidencia com precisão: a de que nenhum poder sobrevive ao próprio excesso. Napoleão, ao mesmo tempo símbolo e sintoma desse excesso, é retratado como uma criatura viciada no próprio reflexo.

Joaquin Phoenix acerta ao não tentar humanizar um personagem que se alimenta de sua desumanidade. Sua performance rechaça a empatia e aposta na inquietação. Há algo de grotesco na forma como Napoleão ocupa os espaços — não pela estatura física, mas pela densidade da presença. Ele é sempre o homem que exige mais espaço do que possui. Na Batalha de Waterloo, essa desproporção entre desejo e realidade explode. Não apenas pela derrota, mas porque ali se revela o vazio que sempre esteve sob a pompa. Sua obsessão por controle encontra, enfim, o limite imposto pela História — e a câmera, cúmplice de sua arrogância até então, recua para observar a derrocada com um olhar quase clínico.

Se a História tem horror ao vácuo, o presente parece ter horror à complexidade. Nesse sentido, “Napoleão” também funciona como advertência. A tentativa de reinterpretar figuras históricas com os filtros morais do agora frequentemente descamba para julgamentos que desconsideram contexto, ambivalência e contradição. Scott não o exime, mas tampouco o reduz a vilão de novela. Entende que, para entender o passado, é preciso confrontar seus monstros com lucidez, não com slogans. A política atual, tão afeita à teatralização da virtude, talvez tema exatamente isso: ser obrigada a reconhecer em Napoleão menos um espelho deformado que uma herança incômoda — ainda pulsante sob novas máscaras.