O suspense que virou febre na Netflix em 2024 continua no topo — e seu final ainda divide opiniões em 2025 Divulgação / Netflix

O suspense que virou febre na Netflix em 2024 continua no topo — e seu final ainda divide opiniões em 2025

Entre as produções de Natal da Netflix — hoje menos um campo criativo e mais um aterro de fórmulas cínicas —, “Bagagem de Risco” poderia facilmente ter se perdido como mais uma peça descartável embrulhada para presente digital. Mas, ao contrário do que sugerem os bonecos de neve sexualizados, os romances melosos e os elencos reciclados à força de algoritmo, o filme assinado por Jaume Collet-Serra não apenas desafia o marasmo sazonal como encarna uma provocação involuntária: o que restou da tradição dos thrillers de ação, quando esvaziados de mitologia, de universos compartilhados e da obrigação de parecer maiores do que são? A resposta se desenha aqui, entre raios-x, malas suspeitas e dilemas morais que resgatam a tensão visceral de um gênero em vias de domesticação.

No centro da narrativa está Ethan Kopek, um agente da TSA cuja ambição cabia em um crachá de segurança até ser atropelada por uma ameaça que recodifica sua rotina banal em um jogo de sobrevivência. Interpretado por um Taron Egerton menos exuberante do que de costume, o personagem ganha força justamente na contenção: um homem comum, deslocado de qualquer heroicidade caricata, convocado a agir em nome de algo maior do que sua própria mediocridade. Quando recebe um fone de ouvido anônimo e a ordem de liberar uma mala sem questionamentos sob a promessa de que sua namorada grávida permanecerá viva, o dilema passa longe do campo abstrato. A urgência não vem de explosões, mas da lógica moral implacável de um roteiro que comprime a narrativa a um dilema ético irrecusável: é possível proteger quem se ama sem condenar os outros à morte?

Essa pergunta, embora simples, conduz a espinha dorsal de “Bagagem de Risco” com uma astúcia pouco vista em produções recentes. O roteiro de T. J. Fixman evita a tentação do discurso e opta por dramatizar o conflito em um cenário que já é, por natureza, um caldeirão de estresse coletivo: o aeroporto em véspera de Natal. Collet-Serra, experiente em transformar espaços cotidianos em arenas de tensão — como já havia feito em “O Passageiro” e “Noite Sem Fim” —, compreende que o verdadeiro campo de batalha não é externo, mas interno. A câmera persegue Ethan em corredores claustrofóbicos, alternando entre o olhar do controle e o da impotência, enquanto o vilão — interpretado por um surpreendente Jason Bateman — infiltra sua ameaça com precisão cirúrgica, articulando cada ordem com frieza e charme venenoso. Aqui, o antagonismo não se impõe pela força, mas pela inteligência: Bateman cria um vilão que ensina, filosofa e manipula como quem oferece conselhos de autoajuda — e cada frase traz consigo um fio invisível de coerção.

Ao mesmo tempo, “Bagagem de Risco” acena para o passado sem se prender a ele. A estrutura remete diretamente aos clássicos dos anos 1990 — de “Duro de Matar 2” a “Decisão Executiva” —, mas com a autoconsciência de que não há mais espaço para a ingenuidade explosiva daquela era. O que havia de charme nos thrillers de uma única locação hoje demanda adaptação: o filme atualiza o gênero sem entregá-lo à paródia ou à saturação visual. Não há tentativas de grandeza artificial; em vez disso, há um compromisso genuíno com o ritmo e com o conflito dramático. Mesmo quando recorre a cenas absurdas — como uma luta ao som de “Last Christmas” —, o filme mantém uma coesão tonal que surpreende. A extravagância, aqui, é episódica e funcional, não uma tentativa desesperada de viralização.

É certo que há falhas: a detetive Elena Cole, vivida por Danielle Deadwyler, representa uma subtrama com potencial desperdiçado. Embora sua atuação dê conta do peso dramático, sua personagem só encontra real utilidade no terceiro ato, quando a trama já não pode mais ignorá-la. Também é difícil defender certas incongruências — como a inexplicável ausência de vigilância em setores da TSA —, mas é preciso reconhecer que o filme não pretende competir com manuais de lógica, e sim com a capacidade do público de suspender a descrença em nome de uma tensão bem construída. A crítica obcecada por coerência plena talvez esqueça que todo bom thriller exige não apenas atenção, mas entrega — e “Bagagem de Risco” recompensa quem aceita seu jogo.

O resultado, apesar dos tropeços, é um filme que reluz não por ser ambicioso, mas por ser consciente do próprio tamanho. Collet-Serra retorna ao que faz de melhor com precisão e domínio: criar labirintos de tensão onde o herói não salva o mundo, mas tenta não perdê-lo por completo. Em um mercado saturado por narrativas inchadas, a simplicidade se torna ousadia. E talvez seja esse o maior triunfo de “Bagagem de Risco”: lembrar que um bom thriller não precisa de um multiverso para funcionar, apenas de uma escolha impossível, uma mala suspeita e um protagonista que, pela primeira vez, entende o peso real do que carrega.

Filme: Bagagem de Risco
Diretor: Jaume Collet-Serra
Ano: 2024
Gênero: Ação/Crime/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★