Obra-prima digna de Oscar, dirigida por David Fincher, é o melhor suspense criminal da Netflix (e quase ninguém viu) Divulgação / Netflix

Obra-prima digna de Oscar, dirigida por David Fincher, é o melhor suspense criminal da Netflix (e quase ninguém viu)

Em “O Assassino”, David Fincher articula uma fábula áspera sobre o fracasso da perfeição em um mundo devotado à eficiência. O protagonista sem nome, interpretado por Michael Fassbender com a frieza de um código-fonte, é menos um sujeito do que um reflexo de uma mentalidade corporativa global: operando entre fones de ouvido que repetem The Smiths, protocolos milimetricamente executados e um monólogo interno que oscila entre o niilismo prático e o coaching existencial. A arquitetura narrativa do filme, baseada em capítulos que substituem atos dramáticos por segmentos operacionais, não busca empatia, mas sim vigilância: o espectador é levado a observar cada microação com a atenção de quem audita um processo. Trata-se de uma experiência que se recusa a oferecer catarse, revelando antes a obsolescência emocional de um sistema que premiou a desumanização como virtude funcional.

Esse matador de aluguel, que transforma cada assassinato em um serviço logístico, carrega nas mãos não apenas armas, mas a síntese do profissional contemporâneo: automatizado, isolado, refém de métricas. O fracasso de uma única missão basta para desestabilizar essa engrenagem, e é nesse ponto que o filme opera sua torção mais irônica: ao falhar, o assassino se humaniza não pela culpa, mas pela burocracia da vingança. A busca por reequilíbrio após o erro não vem acompanhada de dilemas morais ou questionamentos existenciais. Vem na forma de roteiros de viagem, trocas de identidade e planos meticulosamente traçados. Fincher, aqui, não está interessado em redenção, mas em ilustrar como mesmo o caos se submete a planilhas mentais. Ao inverter o vetor dramático, ele abandona o suspense tradicional e entrega uma meditação glacial sobre a ilusão de controle num universo em que tudo é variável.

Há uma cena emblemática que condensa essa lógica: um confronto físico brutal, em ambiente claustrofóbico, filmado com luz escassa e design de som sufocante. É o ápice da experiência sensorial que o diretor propõe, não como clímax emocional, mas como diagnóstico: quando o corpo entra em cena, é porque o algoritmo falhou. A fisicalidade ali é menos uma questão de ação e mais uma falha de sistema. Nada nesse universo funciona fora do padrão sem consequências, e é nesse momento que se vislumbra a verdadeira tensão do filme: não entre os personagens, mas entre o método e a falibilidade. O que Fincher faz com essa cena é o mesmo que sempre fez com suas obras mais incisivas — desestabiliza a forma para desnudar o conteúdo. Sua obsessão técnica, que já foi interpretada como frieza, se converte aqui em linguagem pura: cada corte, cada som, cada sombra é parte de um vocabulário visual que não pede licença para emocionar, apenas para afirmar.

Essa recusa à emoção tradicional não impede, no entanto, que “O Assassino” seja profundamente revelador. Seu protagonista, que acredita estar acima das falhas humanas, revela-se justamente por sua inabilidade de lidar com elas. É um homem que se imagina impune, mas que funciona dentro de um ecossistema cuja brutalidade está na repetição e não no sangue. Ao colocar esse personagem em rota de colisão com figuras secundárias — como a mulher que compreende, em silêncio, que nada poderá salvá-la — Fincher evidencia onde a verdadeira tragédia se esconde: não no ato de matar, mas na indiferença sistematizada que o precede. Fassbender, com sua expressão hermética e gestos mínimos, é o condutor ideal para essa experiência de dessensibilização que, por paradoxal que seja, ilumina as zonas escuras de nossa própria conformidade com o automatismo.

A provocação maior do filme talvez esteja na forma como ele se encerra — ou se dissolve. Sem grandes revelações, sem viradas dramáticas, sem recompensas. Apenas a persistência do gesto repetido, do ciclo mantido, da normalidade restaurada. Nesse ponto, Fincher abandona qualquer aspiração por completude narrativa e entrega um experimento: o que acontece quando seguimos um personagem cujo objetivo é eliminar todas as margens de erro, inclusive as que nos tornariam humanos? A resposta é incômoda. “O Assassino” não é apenas sobre matar ou ser morto, mas sobre a anestesia como método. A neutralidade como escolha estética. A perfeição como delírio autoconsciente. E nesse jogo entre forma e vazio, o filme revela mais do que pretende: não sobre o matador, mas sobre nós.

A força de “O Assassino” está na sua recusa em ser um thriller convencional. Em vez de nos arrastar por um enredo de vingança inflamado, ele nos empurra para dentro de um labirinto de rotinas e processos onde cada decisão parece mais um cálculo do que uma escolha. É uma sátira do presente travestida de suspense. Um estudo de caso sobre o esgotamento do mito da eficácia. Um retrato desidratado de um mundo que substituiu afetos por métricas. Ao final, o que resta é a imagem de um homem que acredita ter dominado tudo, quando na verdade apenas desapareceu no ruído branco da sua própria disciplina. E é nesse ponto que Fincher, com precisão cirúrgica, nos expõe: não ao horror do crime, mas ao abismo da obediência sem reflexão.

Filme: O Assassino
Diretor: David Fincher
Ano: 2023
Gênero: Ação/Aventura/Crime/Thriller
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★