Se Tarantino recomendasse um filme de ação hoje, seria esse — e está na Netflix Divulgação / Sony Pictures

Se Tarantino recomendasse um filme de ação hoje, seria esse — e está na Netflix

Quando tudo parece girar em torno de narrativas excessivamente conscientes de si mesmas — filmes que exigem leituras acadêmicas em tempo real e tuítes recebidos como tratados ideológicos — há um valor quase subversivo em um título que se recusa a vestir esse peso. “Bad Boys para Sempre” não apenas retorna a uma franquia que muitos nem lembravam ainda existir: ele a reescreve no presente como um gesto de insólita lucidez. Não porque aspire à seriedade, mas justamente por evitá-la. A graça do filme não está em ignorar o tempo, mas em incorporá-lo como linguagem — fazendo da passagem dos anos, das rugas, das hesitações e da fadiga física, a matéria-prima de um espetáculo que dialoga com o passado sem se limitar a homenageá-lo. Entre piadas sobre joelhos estalando, batalhas coreografadas com precisão absurda e laços afetivos forjados no calor de explosões, esconde-se um comentário astuto sobre o esgotamento emocional dos heróis e a saturação das próprias fórmulas do gênero.

Esse retorno, contudo, não se contenta em repetir a cadência de suas antecessoras. O que torna esta terceira entrada singular é a forma como reorganiza seus próprios clichês e encontra neles algo de novo. Os elementos estão todos ali: o parceiro que quer se aposentar, o outro que vive como se a velhice fosse um boato, o vilão com motivação pessoal, a perseguição inevitável. Mas ao invés de trafegar por esses pontos com a previsibilidade que tantos blockbusters adotam como refúgio, o filme faz de cada um deles um trampolim para pequenas rupturas. A cena em que Mike revela um trauma antigo, por exemplo, seria melodrama puro se não fosse imediatamente atravessada por uma resposta de Marcus que transforma o momento em tragicomédia involuntária — e é nesse desequilíbrio entre o riso e o incômodo que o filme se sustenta com mais vigor. A fragilidade se insinua, mas não assume o controle; o riso é constante, mas nunca anestesiante.

A chave para esse equilíbrio está na forma como os diretores Adil El Arbi e Bilall Fallah entendem o legado que estão atualizando. Ao contrário de Michael Bay, que via o excesso como um fim em si mesmo, Arbi e Fallah enxergam nele um idioma a ser reformulado. A ação continua sendo grandiosa, mas agora com um sentido de articulação visual que respeita a coreografia dos corpos e não apenas a grandiosidade dos efeitos. O caos se ordena em torno de relações — entre parceiros, entre pais e filhos, entre passado e presente. Isabel, a antagonista que articula sua vingança com o fervor místico de uma matriarca dos infernos, é mais do que um motor narrativo: ela é o elo que obriga os protagonistas a confrontarem não apenas o inimigo externo, mas os rastros de uma juventude marcada por omissões, excessos e ilusões de controle. A maternidade invertida de Isabel, associada à iconografia da Santa Muerte, cria uma figura que escapa ao arquétipo e desafia o roteiro a levar seus personagens além do previsível.

Nesse sentido, o filme funciona menos como uma sequência e mais como um espelho deformado das versões anteriores. Se “Bad Boys” (1995) era um exercício de estilo ainda imaturo e “Bad Boys 2” (2003) afundava no sentimentalismo e na dilatação narrativa, “Bad Boys para Sempre” opera como uma resposta a ambos — e, curiosamente, também como uma crítica velada ao próprio legado de filmes dos anos 1990 que inspiraram sua existência. Há, sim, uma nostalgia operando em segundo plano, mas ela não se apoia no conforto das referências: se manifesta nas rugas dos protagonistas, na ironia de suas falas, no modo como o tempo se torna personagem central sem jamais ser tematizado com didatismo. Até mesmo o elenco jovem — incorporado com habilidade por nomes como Vanessa Hudgens e Charles Melton — serve mais como tensão do que como renovação automática. Eles não estão ali para substituir os veteranos, mas para colocá-los em contraste e ampliar o campo de conflito geracional.

É justamente nessa zona de atrito entre o que se foi e o que não se quer deixar de ser que o filme encontra seu pulso mais autêntico. A tragédia pessoal que os une no segundo ato — não explicitada com pompa, mas com uma eficiência quase seca — reativa a parceria com mais densidade emocional do que qualquer cena de tiroteio poderia oferecer. Quando Marcus, que havia jurado abandonar a violência, empunha uma metralhadora para proteger o parceiro, o gesto transcende a lógica da ação: não é um retorno à antiga forma, mas uma escolha consciente diante daquilo que ainda precisa ser encerrado. Não há heroísmo ali, apenas uma lealdade que sobrevive à ideologia do policial imbatível. Mike, por sua vez, experimenta o impacto das próprias ações de forma inédita, e quando a reviravolta do terceiro ato coloca sua identidade em xeque, não se trata de um simples artifício de roteiro — mas de uma reconfiguração simbólica do próprio arquétipo do herói.

O mérito maior de “Bad Boys para Sempre” está justamente em fazer tudo isso parecer fácil. É um filme que brinca com a lógica do exagero, mas que entende onde estão os limites de sua linguagem. Não tenta ser mais do que é — o que, paradoxalmente, o torna mais ambicioso do que a maioria dos épicos que pretendem dizer algo grandioso sobre o mundo. Ao invés de oferecer respostas, ele prefere dramatizar impasses: entre passado e presente, entre vingança e redenção, entre juventude e maturidade. Ao escolher rir dessas contradições sem fugir delas, o filme oferece uma forma rara de leveza — aquela que só se alcança quando se reconhece, com honestidade e alguma graça, que até os heróis mais barulhentos precisam, em algum momento, ouvir o que o silêncio insiste em dizer.

Filme: Bad Boys para Sempre
Diretor: Adil El Arbi e Bilall Fallah
Ano: 2020
Gênero: Ação/Comédia/Crime/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★