“Jackie” é o primeiro volume de uma espécie de trilogia de mulheres glamorosas, atormentadas e, sobretudo, genuínas proposto por Pablo Larraín, e nesse o diretor parece mais inspirado. Larraín estrutura seu filme de modo a parecer que há duas histórias nos econômicos cem minutos de enredo, uma apenas sobre Jacqueline Lee Bouvier Kennedy (1929-1994), outra a respeito de de sua participação no governo do marido, John Fitzgerald Kennedy (1917-1963), literalmente até os estertores. Junto com “Spencer” (2021) e “Maria” (2024), as biografias romanceadas de
Diana de Gales (1961-1997) e Maria Callas (1923-1977), “Jackie” compõe um manifesto bastante natural acerca da posição da mulher na sociedade ao longo dos anos, sem que para isso seja necessário levantar bandeiras. O roteiro de Noah Oppenheim fala por si só ao imaginar como pode ter sido a longa entrevista da ex-primeira-dama ao jornalista Theodore H. White (1915-1986), duas semanas após o assassinato de JFK, no começo da tarde do dia 22 de novembro de 1963. A partir de suas anotações, sobre as quais Jackie tinha poder de veto, White escreveu “For President Kennedy: An Epilogue” (“para o presidente Kennedy: um epílogo”, em tradução literal), artigo que saiu pela “Life” em 6 de dezembro de 1963. E o resto é História.
Jackie recebe o jornalista, anônimo no relato de Larraín, em Martha’s Vineyard, a residência de verão do chefe de Estado americano, em Massachusetts, alternando-se entre o saudosismo e uma lucidez cortante, como se pesasse cada palavra, por saber muito bem que poderia atrair para si uma legião de inimigos com os quais não saberia lidar. Aos poucos, o filme passa às lembranças da única mulher numa sala só de homens, conferindo especial destaque a “Um Tour pela Casa Branca com a Sra. John F. Kennedy”, transmitido em 14 de fevereiro de 1962, programa de televisão no qual Jackie apresenta ao público da CBS e da NBC cada cômodo do edifício solene que transformou em lar, inclusive adquirindo móveis e obras de arte caros, o que volta e meia causava problemas ao marido. O Emmy honorário concedido pela Academia de Artes e Ciências Televisivas não amenizou a situação da anfitriã agora mais famosa do planeta, e Jackie quase se atrapalha com as perguntas de seu interlocutor, encarnado por um Billy Crudup que traz humanidade à cena ao fustigar aquela mulher fragilizada ao passo que também se interessa pelo que ela tem a lhe dizer. Esses flashbacks encadeiam-se seguindo um padrão, durante o qual a personagem central vai de uma figura ainda imponente ao arremedo de si mesma, sempre cercada de muita gente, sem direito a sua própria vida.
O onipresente Robert Fitzgerald Kennedy (1925-1968) era um daqueles que não se cansavam de estar sempre tensionando a corda um pouco mais, ainda que sua atuação tenha sido fundamental para que Jackie sobrevivesse à execução de JFK, registrada em todos os seus impressionantes detalhes pela equipe coordenada por Hank Atterbury. Peter Saarsgaard ganha um espaço merecido, especialmente no segundo ato, na extensa preparação do funeral, cheia de idas e vindas. “Jackie”, claro, só sai da mesmice de mais uma peça sobre uma das maiores tragédias cívicas dos Estados Unidos graças a Natalie Portman, sempre atenta ao mínimo gesto que pudesse fazer de seu trabalho uma construção humana refinada e fidedigna, evitando imitações baratas. Bem ao estilo de uma das mulheres mais inesquecíveis que a humanidade já pôde conhecer.
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