O cinema tem o poder de resgatar figuras históricas do esquecimento e dar-lhes nova vida para audiências contemporâneas. No entanto, essa reconstrução demanda escolhas narrativas que podem tanto iluminar quanto reduzir a complexidade do retratado. “Shirley Para Presidente”, dirigido por John Ridley e estrelado por Regina King, se insere nesse desafio ao abordar um dos momentos mais marcantes da trajetória de Shirley Chisholm: sua candidatura à presidência dos Estados Unidos em 1972. O problema é que ao concentrar exclusivamente nesse evento, o filme sacrifica nuances que dariam mais substância ao retrato da primeira mulher negra a concorrer ao cargo mais alto do país.
Chisholm não surgiu do nada no cenário político. Antes de sua campanha presidencial, ela já havia quebrado barreiras ao se tornar, em 1968, a primeira mulher negra eleita para o Congresso dos EUA. Essa ascensão meteórica não foi fruto do acaso, mas resultado de anos de luta contra um sistema que marginalizava mulheres negras na política. No entanto, “Shirley Para Presidente” opta por ignorar a construção desse caminho e mergulha diretamente na candidatura de 1972, sem explorar os obstáculos prévios que tornaram sua presença naquele momento um feito extraordinário. Essa escolha narrativa, embora compreensível do ponto de vista de foco dramático, acaba por limitar a compreensão do impacto real de sua trajetória.
O roteiro se esforça para capturar a resiliência de Chisholm e sua luta contra o establishment político, mas, em muitos momentos, essa abordagem parece superficial. Em vez de uma imersão profunda em sua estratégia, em suas alianças e nos dilemas que enfrentou, o filme se apoia excessivamente em frases de efeito e discursos históricos, reproduzindo suas palavras sem aprofundar seus significados. O lema “incomprável e inchefiável”, que sintetiza sua essência política, surge de maneira quase decorativa, sem a devida exploração de sua relevância e implicações.
Regina King, no entanto, brilha no papel principal. Sua interpretação dá peso e autenticidade a Chisholm, capturando sua determinação inabalável. É sua presença magnética que sustenta o filme mesmo quando o roteiro tropeça na falta de densidade analítica. Seu desempenho transmite a urgência de uma mulher que se recusou a ser silenciada, mas a estrutura narrativa não permite que essa intensidade se traduza plenamente em uma jornada emocional envolvente.
A produção também oscila em sua ambientação histórica. As locações em Cincinnati, utilizadas para recriar a Nova York dos anos 1970, funcionam de maneira funcional, mas não imersiva. Há momentos bem conduzidos, especialmente na reta final, mas a reconstrução estética do período carece de autenticidade mais visceral. Além disso, a escolha do título “Shirley Para Presidente” parece subestimar a grandiosidade da figura retratada. Um nome próprio, isolado, transmite pouco sobre a magnitude de sua luta e a relevância histórica de sua candidatura.
A recepção crítica reflete essa ambiguidade. Com uma pontuação de 70% no Rotten Tomatoes, “Shirley Para Presidente” é um filme que desperta respeito, mas não necessariamente entusiasmo. Seu lançamento limitado nos cinemas, seguido pela distribuição na Netflix, sugere uma aposta na acessibilidade, mas a narrativa não atinge todo o potencial que uma história como essa permitiria.
“Shirley Para Presidente” funciona como um registro de um momento emblemático, mas falha em capturar plenamente a dimensão de sua protagonista. Para quem busca uma introdução à trajetória de Shirley Chisholm, o filme pode ser um ponto de partida, mas aqueles que esperam uma exploração mais profunda de sua relevância política precisarão recorrer a outras fontes. A candidata que ousou desafiar as estruturas do poder merecia um olhar que fosse além do factual, capaz de revelar a essência de sua luta e o legado que deixou.
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