O novo filme de Tyler Perry estreou no Prime Video — e já é o mais assistido do mundo Divulgação / Amazon Prime Video

O novo filme de Tyler Perry estreou no Prime Video — e já é o mais assistido do mundo

Tyler Perry tenta, em “Duplicidade”, conjugar denúncia e suspense numa narrativa que inicia com uma faísca promissora — a morte brutal de um homem negro desarmado — mas logo se dilui sob o peso de sua própria ambição desordenada. Há um esforço inicial para montar um quebra-cabeça de tensões raciais, interesses midiáticos e dilemas morais, mas o que se forma, no final, é um aglomerado de peças que nunca se encaixam de forma convincente. A história reúne Marley, advogada marcada por perdas, e Fela, jornalista devastada pela mesma tragédia, em uma jornada supostamente íntima por justiça. No entanto, o que se desenrola não é uma análise das cicatrizes da violência policial, mas uma sucessão de distrações narrativas em que personagens entram e somem como peças descartáveis, e a densidade emocional dos eventos se perde em diálogos artificiais e giros de roteiro que minam qualquer possibilidade de empatia real. 

A fragilidade da estrutura dramatúrgica é agravada pela ausência de coerência tonal. O filme hesita entre o thriller conspiratório e o melodrama social, sem se comprometer com a complexidade de nenhum dos dois. Os personagens não são construídos, mas posicionados como peças funcionais: Caleb, o policial branco que mata, é paradoxalmente o único tratado com alguma humanidade, enquanto Marley — teoricamente o eixo emocional da história — é diluída em ações instrumentais e reações genéricas. Sua jornada, em vez de uma escavação interior diante de uma tragédia próxima, transforma-se em um protocolo investigativo guiado mais pela sorte de encontrar informações do que por inteligência dramática. Essa mecânica do acaso como motor da narrativa compromete a legitimidade do mistério proposto e dilui a tensão em um jogo sem regras, onde o inesperado deixa de ser surpresa e passa a ser aleatoriedade. 

Há, no centro da produção, uma contradição que corrói seu potencial desde a origem: o filme quer parecer urgente, mas se comporta como um simulacro. Perry lida com temas de altíssimo impacto — racismo, brutalidade policial, corrupção institucional, sensacionalismo jornalístico — como se bastasse nomeá-los para que tivessem peso. O resultado é uma ilusão de profundidade: os tópicos estão lá, mas empilhados, não desenvolvidos. São tratados como verniz, nunca como matéria viva. A sensação é de que “Duplicidade” encena um problema, mas não o interroga; cita a ferida, mas não a abre; dramatiza a opressão sem de fato escutá-la. O filme tenta convencer de que está dizendo algo essencial sobre a América contemporânea, mas suas palavras são ocas, suas imagens pouco fiéis à urgência que evocam. 

Essa ausência de enraizamento também transparece nas cenas, que parece confundir artifício com estilo. A direção visual de Perry aposta em uma paleta azulada que, se busca evocar frieza ou burocracia institucional, acaba apenas por obscurecer a imagem e embaçar a expressão. O excesso de filtros digitais e composições genéricas transforma rostos em superfícies planas, inibindo a identificação do espectador com as personagens. Mesmo as atuações, em especial de Kat Graham e Meagan Tandy, encontram pouco espaço para respirar: o roteiro não permite que a dor se manifeste organicamente, e a direção parece mais preocupada em avançar a trama do que em explorar as emoções que ela promete. A única performance que escapa à homogeneização é a de RonReaco Lee, cuja ambiguidade moral injeta uma tensão quase solitária num mar de previsibilidades. 

O que mais perturba não é a ausência de respostas, mas a falta de perguntas reais. Em vez de construir uma narrativa que tensione os limites da justiça, da verdade ou da representação, “Duplicidade” opta por uma sucessão de enigmas que só servem a si mesmos. Quando enfim se revelam os segredos que cercam o tiroteio central — incluindo uma conspiração interna entre policiais e um sequestro que beira o absurdo — o público já está exaurido por reviravoltas que sacrificam consistência em nome de um impacto que nunca se cumpre. A impressão é a de uma narrativa que tenta resolver seus próprios impasses por saturação: quanto mais caos, melhor. Mas o excesso não esconde o vazio. Ao contrário, a evidência. 

Há ainda um aspecto sintomático nesse projeto: a presença do nome de Perry no próprio título, uma marca que, mais do que identidade autoral, sinaliza controle absoluto sobre uma narrativa que carece precisamente de vozes diversas. A insistência em trabalhar sem uma equipe de roteiristas talvez explique a superficialidade com que as questões são tratadas e a incapacidade do filme de falar com e para o público que deveria ser seu interlocutor direto. Ao insistir em operar de forma autossuficiente, Perry compromete a capacidade da história de dialogar com o mundo real. Em vez de um espelho de conflitos sociais urgentes, o filme se converte em um teatro de intenções que não se sustentam, com personagens que falam em nome da dor, mas sem as camadas que a dor exige. 

“Duplicidade” poderia ter sido uma exploração honesta das contradições de um sistema que insiste em normalizar a violência contra corpos negros. Poderia ter exposto a dissonância entre o discurso público e a verdade íntima das vítimas. Poderia ter ousado desconstruir a retórica institucional que mascara o horror com jargões de legalidade. Mas escolheu a via do espetáculo truncado, da intriga forçada, do discurso sem consequência. O filme insiste em querer falar de tudo, mas termina não dizendo nada que nos faça pensar de outro modo. E talvez o maior incômodo não esteja na história mal contada, mas no fato de que Perry, com tantos recursos à disposição, ainda escolha o caminho mais raso para abordar questões que exigem, antes de tudo, escuta e rigor. A verdadeira duplicidade está aí: entre a promessa de representar e a recusa de compreender.

Filme: Duplicidade
Diretor: Tyler Perry
Ano: 2025
Gênero: Drama/Mistério
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★