Num país onde o crescimento é celebrado como dogma, “O Preço da Verdade” desmonta a retórica do progresso comum bisturi narrativo que penetra até o tutano das estruturas institucionais. Não há celebração do herói nem conforto estético: Todd Haynes, conhecido por visuais exuberantes, entrega um filme glacial, onde até a luz parece contaminada. As imagens congeladas de EdwardLachman substituem o encantamento por uma opressão latente, e a cenografia se recusa a maquiar a decomposição moral em curso. Essa escolha estética não é cosmética, mas epistemológica: sugere que, em certos contextos, o belo seria uma forma de cumplicidade. O resultado é um ambiente onde o ar parece espesso, os escritórios claustrofóbicos e as paisagens, saturadas de silêncio tóxico.
No centro desse ambiente asfixiante, Robert Bilott é mais resistência do que personagem. Mark Ruffalo o interpreta com uma contenção devastadora, traduzindo a degradação interna de alguém que se vê acorrentado a uma verdade que corrói tudo que toca. Bilott não entra no caso da DuPont por convicção, mas por gentileza — um detalhe banal que se transforma em sentença. O ponto de partida é um pasto devastado por água envenenada; o desdobramento, uma batalha solitária contra uma multinacional que lucra intoxicando corpos. Ao descobrir que o PFOA — base do Teflon — persiste no sangue humano por tempo indefinido, Bilott compreende que não combate um crime isolado, mas a própria lógica da impunidade. A tragédia ambiental se desdobra em um embate metafísico: como seguir vivendo num mundo onde até o organismo é sequestrado por interesses de mercado?
O roteiro, baseado no artigo de Nathaniel Rich publicado na “New York Times Magazine”, recusa o espetáculo da revelação. Não há clímax, apenas erosão: moral, física, emocional. Mario Correa e Matthew Michael Carnahan evitam didatismo e optam por uma progressão narrativa que simula o próprio desgaste do protagonista. As caixas de documentos não são apenas material probatório — são labirintos onde se perde a sanidade. A denúncia não se articula em discursos inflamados, mas em microdesgastes que vão corroendo as estruturas em silêncio. Nesse sentido, o casamento com Sarah (Anne Hathaway) não é subplot, mas sintoma: enquanto Bilott se afunda na verdade, o mundo ao seu redor desaba. A ausência de soluções rápidas espelha a dimensão sistêmica do problema. A DuPont não é vilã: é engrenagem — e talvez o mais assustador seja perceber o quanto nos habituamos a seu funcionamento.
A interpretação de Bill Camp, como o fazendeiro Wilbur Tennant, injeta indignação legítima em um universo onde tudo é mediado por contratos e eufemismos. Sua fúria animal confronta diretamente a polidez jurídica que tenta maquiar a barbárie. Hathaway, apesar de alguns excessos, consegue captar o desalento doméstico de quem vê o parceiro ser tragado por uma obsessão impessoal. Em torno deles, Todd Haynes organiza uma mise-en-scène que reconfigura o procedural tradicional. A linguagem visual funciona como denúncia paralela: o plano da vaca enlouquecida ou a visita perturbadora ao Benihana funcionam como lembretes de que o absurdo já se instalou como rotina. E quando as vitórias finalmente vêm — em forma de acordos judiciais ou quedas nas ações da empresa — elas não oferecem redenção. Há apenas o cansaço de quem sobreviveu à travessia.
Mas talvez a grandeza do filme esteja justamente em sua recusa ao fechamento. Ao invés de encerrar a história com um triunfo, Haynes opta por deixá-la em suspenso — como o PFOA, que continua circulando em nossos corpos. É uma narrativa que não busca convencer, mas inquietar; que não se interessa em moralizar, e sim em expor o quanto a estrutura está desenhada para proteger o poder. A batalha de Bilott, mesmo quando vitoriosa, revela a falência do sistema que deveria regulá-lo. Não é um filme sobre justiça — é sobre exaustão. E ao final, o que fica não é uma lição, mas uma inquietação incômoda: quantas verdades ignoramos por conveniência? Quantas estruturas parecemos dispostos a defender até que nos destruam por completo?
Haynes não apenas dramatiza um caso emblemático — ele nos obriga a encarar o peso de sermos cúmplices. “O Preço da Verdade” não se contenta em denunciar o que foi feito, mas desafia o espectador a se perguntar o que continua sendo feito agora, sob seu olhar distraído. Quando a justiça depende de décadas de sacrifício individual para existir, talvez o que esteja contaminado não seja apenas o solo — mas a própria ideia de civilidade. E essa constatação, mais do que qualquer imagem chocante, é o que permanece.
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