Épico medieval com Matt Damon, Adam Driver e Ben Affleck é o melhor filme que você verá este mês no Prime Video Divulgação / 20th Century Studios

Épico medieval com Matt Damon, Adam Driver e Ben Affleck é o melhor filme que você verá este mês no Prime Video

“O Último Duelo”, de Ridley Scott, desconstrói o mito da bravura feudal com a precisão de um entomólogo examinando uma civilização em decomposição. Seu épico medieval, embora armado até os dentes de batalhas coreografadas e atmosferas opressivamente verossímeis, recusa-se a se render à estética da glória. Em vez disso, expõe a engrenagem moralmente falida que sustentava os rituais de honra da França do século 14, desnudando uma sociedade onde o poder é sustentado pela ficção da masculinidade heroica e onde a verdade é moldada por quem tem voz, não por quem tem razão. Ao articular essa ruína histórica com uma retórica contemporânea, o filme não busca aceno de modernidade, mas a inquietação de um espelho torto que insiste em refletir o presente. 

O roteiro, assinado por Nicole Holofcener em parceria com Matt Damon e Ben Affleck, estrutura-se como um tribunal de versões conflitantes, inspirando-se no princípio narrativo de “Rashomon”, mas com uma ousadia que transcende a simples alternância de perspectivas. O que se vê é uma disputa simbólica em que a memória masculina tenta colonizar a realidade. Jean de Carrouges se imagina mártir traído, Jacques Le Gris se vê como vítima do próprio carisma, e apenas Marguerite, a única sem espaço institucional, revela a lógica cruel que os dois tentam camuflar. Scott confia à personagem feminina a única versão sem adorno, onde o estupro não é um debate moral, mas uma violência irrecusável. A clareza do relato, por sua vez, não busca simpatia — apenas justiça em um mundo que sequer reconhece sua existência. 

O que torna essa denúncia mais contundente é justamente o contraste entre a sofisticação visual do filme e a brutalidade de seu conteúdo. Não há romantização possível quando a câmera insiste no aço cortando carne, no suor sob elmos, na impassividade de uma plateia que celebra a agonia alheia como entretenimento. A sequência do duelo, que abre e encerra o filme, não é o clímax de uma jornada, mas a encenação de um sistema doente onde o corpo feminino serve de moeda de veracidade. A multidão vibra com cada estocada como se assistisse a uma farsa cômica. E Scott, ao manter a figura da jovem risonha na arquibancada ao fundo — jamais em destaque —, deixa claro que o grotesco é social, não individual. A perversidade não está nos monstros, mas no riso que os acompanha. 

Não há espaço para heroísmo nesse cenário. A figura de Carrouges, interpretada com severidade estoica por Damon, é menos um protagonista do que uma engrenagem — um homem moldado por ressentimento e vaidade, cuja defesa da esposa é inseparável de sua sede de prestígio. Le Gris, vivido por Adam Driver, jamais é retratado como vilão explícito; sua monstruosidade reside na convicção de inocência. Essa ambiguidade deliberada não alivia a culpa, mas revela a anatomia da autocomplacência. Já Marguerite, interpretada por Jodie Comer com notável contenção, é a única figura capaz de atravessar o roteiro sem perder a integridade. Sua versão dos fatos não é mais emocional — é mais lúcida. E por isso, mais perturbadora. 

A escolha de seguir registros históricos reais e preencher suas lacunas com lógica emocional e crítica social não enfraquece o filme — ao contrário, fortalece sua precisão narrativa. Quando não há registro, o roteiro não inventa: deduz com inteligência. As repetições de cenas entre as versões não são redundâncias, mas ressonâncias — o mesmo gesto, a mesma frase, ganha novas implicações a cada repetição, evidenciando como o olhar condiciona a memória. Essa abordagem exige do espectador atenção não apenas aos fatos, mas ao modo como são apresentados, criando uma experiência menos pautada pela empatia e mais pela desconfiança. É nesse tensionamento entre narrativa e verdade que o filme atinge sua complexidade máxima. 

Ridley Scott, aos 87 anos, não realiza aqui um gesto nostálgico, mas uma intervenção. Volta ao universo que o consagrou em “Gladiador” e “Cruzada”, mas agora para corrigi-lo — ou, ao menos, questioná-lo com uma lucidez desconcertante. “O Último Duelo” não pretende oferecer redenção, tampouco um manifesto. Ele prefere provocar o desconforto de quem percebe que a barbárie nunca desapareceu, apenas mudou de figurino. Nesse sentido, o filme é menos uma recriação histórica do que uma crítica ao modo como o passado é romantizado por aqueles que dele sempre se beneficiaram. O duelo do título não é apenas entre dois homens. É entre versões, entre ficções convenientes e verdades insuportáveis. E, nesse embate, a plateia moderna talvez descubra que ainda há muito a perder — principalmente se insistir em não escutar quem nunca teve permissão para falar. 

Filme: O Último Duelo
Diretor: Ridley Scott
Ano: 2021
Gênero: Drama/Épico/História/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★