Há filmes que nos contam uma história e há aqueles que nos obrigam a duvidar da nossa própria capacidade de compreendê-la. “As Linhas Tortas de Deus” pertence, sem dúvida, ao segundo grupo. Dirigido por Oriol Paulo e baseado no romance de Torcuato Luca de Tena, o longa-metragem espanhol não se limita a entregar um thriller psicológico: ele o desestrutura, molda-o como espelho quebrado e convida o espectador a se perder entre os estilhaços. Ao longo de 155 minutos, o que começa como uma investigação clássica em um manicômio rapidamente se converte em um ritual de vertigem, onde o real e o ilusório se misturam com tamanha precisão que nem mesmo a protagonista, Alice Gould — vivida de forma hipnotizante por Bárbara Lennie — parece saber de onde partiu ou aonde está indo. Nesse mundo onde a sanidade é apenas mais uma narrativa possível, a loucura se insinua não como doença, mas como linguagem.
Alice entra na instituição como uma detetive disfarçada, supostamente contratada para investigar a morte suspeita de um interno. Para isso, cria uma identidade falsa: envenenadora fria, esposa traída, mulher desequilibrada. Contudo, à medida que a trama avança, não são apenas os médicos que questionam sua versão — é o próprio espectador que começa a duvidar do que viu. O hospital psiquiátrico, com seus corredores opressivos e habitantes esquivos, torna-se cenário de uma guerra silenciosa entre versões conflitantes, entre memórias borradas e verdades convenientemente adaptadas. Alice se diz lúcida. Mas seria possível confiar na lucidez de alguém que escolhe viver entre os loucos? Ou será que toda sua história é apenas mais uma das alucinações cuidadosamente encenadas por uma mente em colapso?
A potência do filme reside justamente nessa recusa em oferecer chão firme. A montagem fragmentada, os saltos temporais não sinalizados, os flashbacks que mais confundem do que esclarecem — tudo parece desenhado para sabotar o conforto narrativo. A estrutura em espiral conduz o público por um território em que o tempo e a identidade são instáveis, como se o hospital funcionasse sob uma gravidade própria, onde os eventos se repetem, distorcem e contradizem. Cada revelação é simultaneamente solução e enigma. E a dúvida não é um efeito colateral: é o próprio método. Oriol Paulo — já reconhecido por títulos como “O Corpo”, “Um Contratempo” e “Durante a Tormenta” — atinge aqui o ápice de sua engenhosidade ao usar o suspense não como finalidade, mas como instrumento de dissociação perceptiva.
Esse jogo labiríntico só funciona porque encontra em Bárbara Lennie uma intérprete à altura. Sua Alice é simultaneamente vulnerável e impenetrável, capaz de transmitir sofrimento autêntico e frieza meticulosa no mesmo gesto. É ela quem sustenta a ambiguidade central do filme: a personagem é vítima ou arquiteta da trama? Seus silêncios são gritos de desespero ou manipulação calculada? O roteiro, coescrito por Paulo, Guillem Clua e Lara Sendim, evita qualquer gesto que simplifique essa questão, preferindo manter Alice em constante mutação — uma figura que escapa à definição e por isso mesmo magnetiza. Não por acaso, seu desempenho rendeu comparações com o personagem de Leonardo DiCaprio em “Ilha do Medo”, embora Lennie, aqui, vá além da emulação: ela reinventa o arquétipo da heroína trágica, tornando-a um enigma moral.
Há ainda, sob a superfície do suspense, uma camada filosófica que transforma o filme em uma parábola sobre a fragilidade da razão. Alice não é apenas uma personagem — ela é a metáfora da própria mente contemporânea, pressionada por traumas, cercada por verdades maleáveis, aprisionada em instituições (mentais ou simbólicas) que dizem protegê-la enquanto a neutralizam. O manicômio não é apenas um cenário: é o espelho distorcido da sociedade que busca diagnosticar, controlar, sedar. E o maior dos horrores talvez não esteja nos corredores sombrios da instituição, mas na constatação de que não há mais fronteiras nítidas entre lucidez e delírio. Como em “Alice no País das Maravilhas” — figura evocada com ironia perversa ao longo do filme —, a protagonista mergulha em um universo onde lógica e absurdo dançam juntos, e onde o coelho branco pode muito bem estar usando um jaleco psiquiátrico.
Visualmente, “As Linhas Tortas de Deus” é de uma beleza sombria. A fotografia explora o contraste entre os espaços fechados e a vastidão da mente em colapso. A trilha sonora não dramatiza o mistério — ela o prolonga. E cada plano parece construído para acentuar a sensação de clausura e paranoia. Mesmo os momentos de aparente clareza visual estão contaminados por alguma distorção sutil, como se o próprio olhar do espectador estivesse doente. O filme, afinal, não quer ser decifrado: ele quer ser sentido, na carne e no espírito.
O desfecho, por sua vez, não entrega respostas — entrega abismos. Ao final, resta ao público não a compreensão, mas a inquietação: o que era verdade? O que era invenção? Alice era livre ou prisioneira desde o início? Essas perguntas não encontram eco no roteiro, mas ressoam na mente de quem assiste, como vozes no corredor de um hospício. Porque “As Linhas Tortas de Deus” não quer que você entenda. Quer que você se perca. E, ao se perder, talvez descubra que o mais perigoso dos labirintos não é o hospital onde Alice se encontra. É o que construímos dentro de nós mesmos, com os tijolos tortos daquilo que um dia chamamos de razão.
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