Filme ação na Netflix começa com um assalto — e vira uma discussão filosófica entre tiros Divulgação / Sony Pictures

Filme ação na Netflix começa com um assalto — e vira uma discussão filosófica entre tiros

Cinema e música se entrelaçam há décadas, porém raramente esse encontro gera algo realmente singular. Em meio à mesmice do cenário contemporâneo, “Em Ritmo de Fuga” é a rara exceção que propõe algo distinto ao combinar ação vertiginosa e uma trilha sonora sofisticadamente integrada, redefinindo o significado de ritmo cinematográfico. Longe dos padrões previsíveis de produções comerciais ou pretensões estéticas artificiais, Edgar Wright entrega uma narrativa em que a música não é um mero adereço, mas a espinha dorsal da própria experiência cinematográfica. Não se trata apenas de entretenimento bem executado, e sim de uma visão audaciosa que expande os limites convencionais do gênero.

No centro dessa narrativa pulsante está Baby, interpretado com precisão por Ansel Elgort. O personagem, jovem e lacônico, é um virtuoso condutor que, paradoxalmente, é motivado por uma deficiência: um zumbido insistente, resultado de um acidente traumático da infância, força-o a viver em constante diálogo com a música. A complexidade dessa condição reside no fato de que Baby não usa sua limitação auditiva como justificativa para o crime, mas como mecanismo de autodefesa psíquica. A direção segura de Wright capta magistralmente essa tensão existencial, trazendo à tona reflexões sobre como a arte pode, simultaneamente, libertar e aprisionar, amortecer dores profundas e revelar verdades incômodas.

A performance de Elgort transcende o arquétipo do “criminoso charmoso”, ao conferir ao protagonista um realismo psicológico que raramente habita produções de ação tradicionais. Sua introspecção quase filosófica contrasta com o frenesi das cenas de fuga, filmadas sem o recurso fácil do CGI. Ao apostar em efeitos práticos, Edgar Wright não só amplia a imersão sensorial como também denuncia implicitamente a artificialidade predominante nos blockbusters modernos. O filme torna-se, assim, uma crítica sutil à previsibilidade visual e temática do cinema comercial atual, lembrando-nos do impacto visceral que imagens reais, orgânicas e não digitalizadas podem proporcionar.

Outro aspecto surpreendente da narrativa é a forma como Wright constrói um universo sonoro diegético, integrando ruídos aparentemente banais à trilha musical, como se a própria vida cotidiana fosse uma composição cuidadosamente orquestrada. Desde os acordes explosivos de “Bellbottoms” na cena inicial, até o refinamento melódico de “Easy”, dos Commodores, cada faixa não apenas define o tom emocional da cena, mas também atua como um comentário paralelo à ação que transcende a mera combinação audiovisual. A música, portanto, não serve apenas à estética ou ao entretenimento: torna-se uma linguagem narrativa adicional, carregada de significado simbólico.

É inevitável refletir sobre o papel do amor como força narrativa neste filme, especialmente na relação entre Baby e Debora, interpretada por Lily James. O encontro dos dois não segue o clichê do romance como redenção simplista; antes, funciona como um contraste delicado entre esperança e destino trágico. Baby reconhece na garçonete uma possibilidade remota de normalidade, porém Wright inteligentemente deixa implícito que a vida comum talvez já não seja possível para quem mergulhou tão profundamente no submundo do crime. O filme sugere, de maneira indireta mas poderosa, que certas escolhas têm consequências irreversíveis — o romantismo da fuga colidindo frontalmente com a dura realidade da responsabilidade moral.

Ao comparar “Em Ritmo de Fuga” com obras anteriores como “Drive”, de Nicolas Winding Refn, percebe-se que Wright se distancia da atmosfera pesada e minimalista daquela produção, optando por um dinamismo narrativo mais explícito, sem abrir mão de profundidade psicológica. Ao invés de emular referências óbvias, o diretor propõe uma reinvenção do que significa viver à margem, enfrentando os próprios demônios enquanto tenta preservar algum traço de humanidade. Trata-se de uma investigação visual e sonora sofisticada sobre a natureza precária das escolhas pessoais, especialmente quando elas se cruzam com universos marcados pela violência.

As indicações técnicas ao Oscar, embora não convertidas em premiações, são sintomáticas dessa ousadia cinematográfica. Elas reconhecem que o filme alcançou um raro equilíbrio entre experimentação artística e competência técnica impecável, revelando o potencial de Wright para gerar um impacto real na maneira como percebemos cinema de ação. A obra sugere, acima de tudo, que a originalidade não é apenas desejável, mas essencial para o futuro da produção cinematográfica — uma provocação direta ao marasmo criativo dominante.

Ao rejeitar qualquer fechamento previsível ou didático, “Em Ritmo de Fuga” termina deixando o espectador em um estado de reflexão ativa, consciente de que assistiu a algo profundamente singular. Edgar Wright entrega uma experiência que, longe de se limitar à diversão momentânea, provoca uma reavaliação sobre o papel da música, da violência e do amor na construção da identidade contemporânea. Nesse entrelaçamento de som e imagem, o filme desafia convenções e reafirma uma verdade frequentemente esquecida: cinema de qualidade é aquele que transforma percepção em revelação.

Filme: Em Ritmo de Fuga
Diretor: Edgar Wright
Ano: 2017
Gênero: Ação/Crime/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★