Em “Terra Sem Lei” (2019), Ivan Kavanagh propõe um retorno singular e intimista ao gênero western, construindo sua narrativa sobre a tensão clássica entre civilização e barbárie, personificada por tipos humanos em conflito. Ambientado em Garlow, cidade fictícia situada no norte da Trilha da Califórnia, o filme se apropria do cenário irlandês para representar o Oregon de 1849, oferecendo uma atmosfera inusitada e sombria, em que a lama substitui a poeira característica do Velho Oeste hollywoodiano. Nesse ambiente cinzento e inóspito, vive o imigrante irlandês Patrick Tate (Emile Hirsch), carpinteiro e coveiro que luta diariamente para sustentar a esposa francesa, Audrey (Déborah François), grávida, e seus dois filhos pequenos. Sua existência pacata, porém precária, é ameaçada pela chegada repentina de Dutch Albert (John Cusack), um forasteiro implacável que desestabiliza a ordem social até então regida por aparências religiosas e disciplina imposta pelo reverendo Samuel Pike (Danny Webb).
A chegada do antagonista Albert, vestido integralmente de preto, acompanhado por seus comparsas Dum Dum (Sam Louwyck) e Sicily (Camille Pistone), impõe rapidamente uma lógica violenta, subvertendo o moralismo frágil defendido pelo reverendo Pike. Após o fechamento do saloon e do bordel pela liga da temperança liderada pelo pastor, Garlow transforma-se em um lugar economicamente deprimido, onde Patrick sente diretamente os efeitos negativos, pois sem mortes ocasionadas por brigas e vícios, o negócio funerário decai vertiginosamente. A entrada desses forasteiros violentos, em busca de um integrante desaparecido, reinstaura a desordem lucrativa, trazendo consigo o caos e o retorno da exploração das fraquezas humanas. Neste contexto, Kavanagh explora com profundidade moral e psicológica a lenta degradação de Patrick, personagem cujas nuances são magistralmente exploradas por Hirsch, à medida que cede à corrupção dos valores que outrora sustentavam sua honra.
Inspirando-se na tradição consagrada por Sergio Leone em “Por Um Punhado de Dólares” (1964), que por sua vez foi uma adaptação livre do “Yojimbo” (1961) de Akira Kurosawa, Kavanagh revisita, sob uma perspectiva contemporânea, a ambivalência moral dos protagonistas que transitam em zonas cinzentas, distantes dos estereótipos clássicos do mocinho e vilão. No entanto, diferente do anti-herói vivido por Clint Eastwood, Patrick Tate não busca flertar com a violência por prazer ou ironia, mas sim por uma sobrevivência dolorosa e culpada, tornando-se cúmplice e beneficiário do terror instaurado por Albert. Cusack, em um de seus melhores papéis recentes, oferece um antagonista carismático e perturbador, que atua tanto pela violência explícita quanto pela manipulação psicológica, enfraquecendo gradualmente o vínculo de Patrick com sua comunidade, enquanto explora preconceitos e ressentimentos latentes contra imigrantes irlandeses.
O desfecho do filme alcança um ápice simbólico e visual perturbador, sintetizando magistralmente as intenções narrativas e críticas do diretor. Na cena final, Tate e Albert têm seu confronto diante de um Cristo crucificado, maculado pelo sangue que escorre dos corpos envolvidos em uma luta definitiva pela alma daquela cidade. A imagem aterradora evidencia o colapso definitivo dos valores religiosos e sociais, revelando como os preceitos éticos e morais são facilmente desmantelados pela violência e ganância humanas. Dessa maneira, Kavanagh transcende as limitações geográficas do gênero western, trazendo uma reflexão profunda e contemporânea sobre a fragilidade das instituições sociais, o preço do silêncio conivente e o eterno retorno à barbárie como consequência inevitável do comodismo e da covardia. Com “Terra Sem Lei”, o cineasta oferece um testemunho potente sobre a relevância persistente do gênero ao discutir temas atemporais como violência, corrupção e decadência moral, comprovando que ainda há muito a se explorar nas trilhas sujas e enlameadas de um oeste revisitado.
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