Há filmes que não almejam reinventar a roda, mas optam por girá-la em outra direção — e é nesse gesto silencioso, quase despretensioso, que podem surpreender. A princípio, “Nuestros Amantes” parece caminhar pelo terreno conhecido das comédias românticas, onde personagens feridos encenam jogos amorosos sob a ilusão de controle. No entanto, Miguel Ángel Lamata opera um desvio sutil: transforma a previsibilidade em armadilha dramatúrgica e, ao fazer isso, expõe os bastidores emocionais por trás do encantamento. O roteiro, ancorado em diálogos construídos com precisão quase literária, escapa do lugar-comum ao propor não apenas uma história de aproximação entre dois estranhos, mas uma investigação sobre os pactos afetivos que fabricamos para evitar o colapso de sermos nós mesmos.
Eduardo Noriega e Michelle Jenner dão corpo a Carlos e Irene — não como tipos narrativos, mas como personagens em suspensão, moldados menos pelas suas dores do passado do que pelas estratégias que desenvolveram para não senti-las mais. O encontro entre os dois se dá num cenário deliberadamente ficcional: uma livraria-café, espécie de refúgio onde o pacto de anonimato serve como escudo para evitar perguntas incômodas. Nada de redes sociais, nada de histórias pregressas, nada de paixão. A ausência de biografia se torna o pretexto para um experimento afetivo e, ao mesmo tempo, para uma fantasia de reinvenção. Mas é justamente nesse não-dito que se aloja o drama real: Irene se equilibra entre a frustração que herdou de um amor idealizado e a necessidade de seguir em frente, enquanto Carlos, soterrado sob o peso de um casamento esvaziado, tenta se reescrever sem saber por onde começar.
Lamata recusa a linearidade típica das narrativas românticas e constrói sua fábula com base no intervalo, na pausa e naquilo que resta por dizer. A dramaturgia privilegia diálogos extensos e deliberadamente artificiais, como se os personagens soubessem que estão encenando — e aceitassem o jogo. Há referências literárias que beiram o exibicionismo, mas o filme não as toma como signo de erudição: usa-as para explorar o contraste entre discurso e experiência. O que parece afetação se revela, aos poucos, estratégia de defesa. Irene e Carlos falam como se pudessem, com palavras, evitar o colapso. Mas o afeto real infiltra-se pelas fissuras do discurso — nos silêncios, nos olhares longos, nas interrupções carregadas de sentido.
O mérito maior do diretor talvez esteja na recusa ao espetáculo emocional. Ao invés de perseguir reviravoltas, ele investiga os pequenos deslocamentos, os gestos mínimos que indicam mudança interior. Quando o passado irrompe — seja na figura da esposa de Carlos ou no reaparecimento do ex de Irene — o que se vê não é uma disputa amorosa, mas uma fratura existencial. Não se trata de reconquistar alguém, mas de reconhecer que já não se é mais quem se era quando se amava aquela pessoa. O foco muda de eixo: o conflito não gira em torno do outro, mas da própria capacidade de reconhecer-se depois da ruína. O amor, aqui, não é redenção — é um espelho incômodo.
A ambientação funciona como extensão emocional da narrativa. Os espaços urbanos de Zaragoza são filmados com uma suavidade que evita o cartão-postal, preferindo a textura do cotidiano. O enquadramento valoriza o rosto, o gesto contido, o tempo que corre entre uma frase e outra. Há um domínio claro do ritmo — e não do ritmo narrativo, mas do ritmo afetivo. Quando o humor aparece, ele não quebra a tensão: funciona como válvula de escape, como um modo de respirar entre as feridas. E é justamente esse equilíbrio — entre a densidade da perda e a leveza do reencontro — que sustenta o filme em sua proposta mais ambiciosa: pensar o amor como risco de linguagem.
Há ainda uma camada metalinguística que atravessa a narrativa com discrição, mas nunca com timidez. Carlos, roteirista em crise, não sofre de bloqueio criativo: ele sofre de bloqueio existencial. Incapaz de escrever, ele encarna o fracasso de quem já não reconhece o próprio enredo. Irene, por sua vez, não se impõe como musa, mas como agente de desconstrução. Sua leveza, frequentemente performática, serve tanto como tentativa de sobrevivência quanto como disfarce de um colapso prestes a se tornar visível. Nesse tabuleiro, o roteiro não serve apenas para contar uma história: serve para revelar como cada personagem tenta controlar a narrativa da própria vida — e onde fracassa.
Michelle Jenner entrega um desempenho que desarma qualquer expectativa. O que poderia ser apenas mais uma versão da mulher encantadora e excêntrica se transforma numa figura de complexidade emocional genuína. Há momentos em que sua dor escapa com uma delicadeza desconcertante, como se o carisma fosse apenas o verniz sobre uma estrutura fragilizada. Noriega, por sua vez, encarna a exaustão com sobriedade. Carlos não está quebrado — ele está gasto. E essa diferença é fundamental para o modo como o filme compreende o envelhecimento emocional: não como tragédia, mas como uma espécie de erosão silenciosa. Ambos os atores evitam qualquer traço de histeria. O afeto, aqui, é contido — e por isso mesmo mais devastador.
O que “Nuestros Amantes” articula, enfim, não é uma história de amor, mas uma reflexão sobre os roteiros afetivos que aceitamos seguir por medo de improvisar. Carlos e Irene não estão apenas apaixonando-se um pelo outro — estão se libertando das personagens que aprenderam a interpretar para sobreviver. O filme não propõe uma revolução do gênero, mas algo talvez mais raro: uma escavação cuidadosa no terreno conhecido, em busca de camadas esquecidas. E o que encontra ali não é resposta, nem redenção, mas um tipo de entrega mais difícil: a coragem de não saber para onde se vai, e ainda assim seguir.
★★★★★★★★★★