A idealização de um morto, sobretudo quando se trata de uma mulher, tende a transformar qualquer tentativa de substituição num duelo viciado, travado entre carne e mito. Quem chega depois se depara com um espectro embalado pela memória coletiva, onde os defeitos dissolvem-se como se jamais tivessem existido. A britânica Daphne Du Maurier compreendeu a potência destrutiva dessa ausência sagrada ao conceber uma figura feminina que reina sem corpo, sem fala, mas com autoridade devastadora.
Em seu romance de 1938, a presença dessa mulher anterior é arquitetada com precisão para jamais se dissipar: ela habita os objetos, atravessa silêncios, corrompe afetos. Não se trata de saudade, mas de imposição. A ficção de Du Maurier não permite descanso àquela que ousa assumir o lugar vago: o trono, apesar de desocupado, permanece inacessível. Cada tentativa de adaptação que se propõe a reviver esse universo se vê diante de um dilema: ou sucumbe à sombra da perfeição anterior, ou ousa profaná-la.
Ben Wheatley, ao dirigir a nova leitura de “Rebecca”, embrenha-se nesse campo minado com uma reverência quase devocional ao texto original. Os roteiristas Anna Waterhouse, Jane Goldman e Joe Shrapnel optam por um caminho de precisão formal, replicando os contornos do romance com zelo arquetípico, como se temessem desfigurar o desenho gótico de Du Maurier. O início em Monte Carlo é, porém, o primeiro deslocamento estratégico: ali, a jovem protagonista, ainda sob domínio da tirânica Van Hopper, é posicionada como uma vítima das desigualdades sociais de uma Europa mergulhada na instabilidade pré-guerra. O roteiro introduz uma tensão latente entre opulência e miséria, que se disfarça nos jantares opulentos e nos corredores dourados embalados por jazz — elementos que, embora visualmente encantadores, desviam parte da gravidade emocional do original. A Manderley desta adaptação continua a ser uma prisão disfarçada de palácio, mas o que antes era um drama íntimo e psíquico ganha tons de espetáculo, o que nem sempre joga a favor da narrativa.
A escolha de Lily James para o papel da nova senhora De Winter acrescenta ambiguidade ao que originalmente era ingenuidade. A personagem, que em Du Maurier é notoriamente anônima e apagada, aqui ganha contornos de determinação mal contida, como se carregasse uma inquietude anterior à própria experiência em Manderley. Essa decisão, embora audaciosa, enfraquece parte da tensão central: ao suavizar a transformação da personagem de menina assustada em mulher soterrada por fantasmas, o filme perde o efeito de espiral que a narrativa original cultivava com maestria. Já Armie Hammer, como Maxim, flutua entre o charme e a opacidade, encarnando um homem esmagado pela culpa, embora sem alcançar a densidade trágica que Laurence Olivier deu ao personagem em 1940. No entanto, é Kristin Scott Thomas, como a governanta Danvers, quem sustenta o eixo emocional mais pungente da adaptação: sua devoção à memória da antiga senhora da casa flerta com um desejo nunca nomeado, um amor inconfesso que transforma o luto em vingança passiva.
Esse elo não nomeado — entre Danvers e Rebecca — é o nervo silencioso que ainda pulsa sob as sucessivas releituras da história. Wheatley não o escamoteia, mas tampouco o enfrenta de frente. A atmosfera sufocante da casa, as alucinações que a nova esposa vivencia, as humilhações disfarçadas de cortesia — tudo isso permanece. Mas a intensidade é amortecida por uma estética asseada demais, que reluz onde deveria corroer. O drama, que deveria implodir internamente, por vezes se transforma em uma coreografia previsível de opressão. O maior mérito do filme, no entanto, está em não permitir que a ausência de Rebecca se resolva: ela continua a ser uma entidade que ninguém vê, mas todos obedecem, inclusive os vivos. A questão, afinal, nunca foi quem ela foi, mas o que sua idealização destrói. E nesse ponto, mesmo com tropeços, a adaptação encontra um fôlego sombrio suficiente para manter viva a maldição que Du Maurier arquitetou — não sobre uma casa, mas sobre toda tentativa de substituição.
★★★★★★★★★★