Há um tipo de silêncio que não se instala com a ausência de som, mas com a saturação do tempo. A pandemia nos deixou exatamente nesse lugar — entre vinhos mal escolhidos, pratos que não cozinhamos e telas que nos fitavam de volta. Na clausura imposta, a ficção ganhou uma espécie de permanência, como se fosse a única forma de reorganizar o caos íntimo. Dentro dessa espiral de isolamento, reconhecer-se em Anna Fox, a psicóloga sitiada de Amy Adams, deixa de ser uma metáfora para tornar-se uma experiência direta: o espelho de uma mente ruidosa em uma casa quieta demais.
Joe Wright, experiente em disfarces narrativos, parece construir uma ponte entre o gênero e o delírio. O filme começa com ares de suspense trivial, mas em pouco tempo desmancha qualquer tentativa de conforto. O que se revela, em vez disso, é o esfarelamento da realidade sob a perspectiva de uma mulher que já não distingue os contornos do que a cerca. A janela de Anna, mais do que uma moldura para o mundo externo, é o palco onde suas obsessões ganham forma. Cada gesto da protagonista não comunica apenas a fragilidade de uma paciente, mas o esgarçamento da razão diante da solidão que fermenta.
O roteiro de Tracy Letts opera como uma partitura hitchcockiana, mas evita imitações reverentes. Em vez de repetir fórmulas, ele subverte o jogo da confiança — o espectador se vê compelido a desconfiar de tudo, inclusive da própria protagonista. O enredo se entranha nas ambiguidades da percepção: Anna vê o que ninguém mais confirma, escuta verdades que parecem ter sido esquecidas pelo mundo. A ilusão e a suspeita se confundem em camadas densas, sem respostas claras, num movimento que evoca menos o susto do thriller e mais o torpor de uma existência aprisionada no trauma.
A estética, conduzida por Bruno Delbonnel, funciona como extensão do transtorno. Os tons terrosos, que recobrem tanto a fachada quanto o interior da casa, não buscam realismo — evocam um tipo de passado fossilizado, como se Anna habitasse um mausoléu com aquecimento central. No centro, a figura da protagonista esmaecida, de pijama, ruiva desgrenhada, quase translúcida, parece deslocada da matéria. A casa, nesse contexto, não é cenário, mas extensão psíquica, cada cômodo um arquivo não resolvido.
O hábito de espiar pela janela não é voyeurismo; é sobrevivência. Anna observa porque já não sabe mais habitar. E quando Ethan, o jovem vizinho, atravessa a soleira com seus sabonetes e meias palavras, algo mínimo se reconecta. Há ternura na troca, mas também um mal-estar tênue, como se qualquer gesto de afeto fosse também uma concessão ao colapso. Aos poucos, ela o transforma num receptáculo emocional, projetando sobre o garoto uma maternidade abortada pela tragédia. E é justamente por esse desvio de funções afetivas que a tensão começa a escorrer pelas frestas.
Cada membro da família Russell assume um papel ambíguo, ora cúmplice, ora ameaça. As visitas encenam uma ópera de duplos e farsas: Jane parece afável, Alistair exala controle, Ethan mistura doçura e inquietação. Anna se perde tentando montar um quebra-cabeça que talvez exista apenas em sua mente. Quando a face da mãe muda de atriz — trocando Julianne Moore por Jennifer Jason Leigh —, a substituição não é apenas de intérprete, mas de identidade: a narrativa expõe o artifício, denuncia a confusão, e sublinha o que o filme realmente pretende dissecar.
O real, aqui, é uma convenção instável. Anna flagra acontecimentos com a convicção de quem busca coerência, mas nada em sua realidade oferece esse consolo. O que ela vê é tão nebuloso quanto suas memórias. Um novo personagem surge para fornecer peças que parecem completar o enigma, mas são apenas mais iscas para o labirinto. Wright recusa resoluções fáceis. Ao invés de elucidar, acumula. E, nesse acúmulo, revela algo mais desconcertante: o quanto a verdade se tornou uma categoria de luxo em uma época anestesiada por ruídos contraditórios.
Pode-se ler “A Mulher na Janela” como um retrato da neurose urbana, uma crítica à medicalização da dor feminina, um estudo sobre a vulnerabilidade diante do abandono. Tudo isso pode estar ali. Mas o que se insinua por trás de cada cena, o que realmente assombra, é o reconhecimento de que há ameaças que não se deixam nomear. Não são apenas os assassinos em potencial — é o pânico que escava de dentro, a sanidade que se esgarça sem aviso. A força do filme não reside em oferecer sustos, mas em sugerir que, talvez, a desconfiança seja o único vínculo possível com o mundo. E nesse aspecto, a peste não trouxe monstros: apenas retirou o verniz de normalidade que os mantinha disfarçados.
★★★★★★★★★★