Não é de hoje que o fascínio de elites ocidentais por paisagens intocadas mascara uma ânsia colonial disfarçada de curiosidade. A velha prática dos safáris — outrora espetáculos de dominação travestidos de lazer — reinventou-se, mas não perdeu seu impulso destrutivo. Onde antes se disparavam balas, hoje se disparam lentes e selfies; onde rugia o tiro, agora ecoa o clique narcisista da câmera. Mas o impulso que move tais expedições segue o mesmo: subjugar, possuir, inscrever-se sobre aquilo que não compreendem. “A Fera” se move nesse terreno instável e perturbador, expondo como o suposto contato com o exótico costuma esconder uma guerra mal disfarçada entre arrogância e natureza
À medida que a narrativa se desdobra, o filme recusa qualquer verniz pacifista que tente suavizar esse embate. A transformação da paisagem em parque temático para turistas entediados — que vão em busca de redenção espiritual ou emoções “autênticas” — torna-se combustível para a tensão. A trama, em um certo momento, abandona o verniz da aventura familiar e escancara o desconforto: não se trata mais de um leão fora de controle, mas de um sistema inteiro de dominação que, ao ser confrontado, revela sua fragilidade essencial. A besta, no fundo, não está apenas na savana — ela vive no coração daqueles que acreditam poder atravessar continentes e ainda assim sair ilesos de sua própria soberba.
Baltasar Kormákur, oriundo de uma terra de geleiras e silêncio, entrega aqui um trabalho que entende o poder da fúria contida. Com um roteiro que poderia facilmente cair na armadilha do didatismo, o cineasta prefere uma condução atmosférica, quase hipnótica, em que a violência nunca vem sozinha, mas carregada de ressignificações. A fotografia de Philippe Rousselot, com seus verdes espessos e dourados de decadência, antecipa o colapso: o cenário tropical não é um convite ao relaxamento, mas um palco de presságios. A natureza, desfigurada pela intrusão humana, prepara sua resposta com a precisão de quem já conhece a repetição da história.
Na abertura, Kormákur opta por uma imagem que engana: uma cerimônia tribal em que o protagonista Nate e suas filhas parecem acolhidos. É um instante de suspensão, quase ilusório, em que os estrangeiros se insinuam como parte do todo. Mas essa harmonia é breve. Quando caçadores locais partem para abater o leão que ameaça sua segurança, o que se vê é menos um gesto de defesa do que uma reedição da vaidade humana. A fera, ao contrário do que sugerem os caçadores, não está à espreita por selvageria, mas por instinto, memória, vingança — e talvez até justiça.
Na estrada rumo a uma aldeia isolada, Nate evoca um passado idealizado, dizendo à piloto que já vivera ali “em outra vida”. A fala, ambígua, abre espaço para uma leitura sarcástica: quantas vezes o colonizador não se reinventa como um convertido místico, convencido de que agora compreende a terra que antes saqueou? Esse é um dos raros momentos em que Idris Elba explora seu carisma com uma nota de ironia. A jornada, no entanto, não tarda a converter o charme em impotência. Conforme os personagens se aproximam da rotina local, o verniz ocidental se desfaz — e com ele, as ilusões de controle.
As filhas, Meredith e Norah, interpretadas com surpreendente maturidade por Iyana Halley e Leah Jeffries, não funcionam como simples coadjuvantes emocionais, mas como catalisadoras de conflito. Ao lado de Martin, personagem de Sharlto Copley, elas presenciam interações delicadas com os leões, num esforço quase ritualístico de convivência respeitosa. Mas o equilíbrio é frágil, e o filme sabe disso. Quando a violência explode — não como espetáculo, mas como resposta —, a narrativa abandona qualquer zona de conforto. O massacre de uma comunidade tsongan transforma o terror em denúncia, e o suspense se converte em um inventário da falência moral daqueles que confundem turismo com penitência.
O que se segue é um clímax tenso, em que o enfrentamento entre homem e fera ultrapassa a simbologia óbvia para assumir tons de julgamento. Não é apenas um embate físico, mas uma tentativa desesperada de Nate de se reconciliar com sua filha mais velha, num cenário em que a linguagem do afeto precisa disputar espaço com a do medo. A fúria do animal encurralado se mistura à culpa do pai ausente, criando um campo de forças em que nenhuma solução é simples, e cada gesto carrega o peso de muitas omissões.
Há, nesse gesto final, um paradoxo inquietante: ao tentar se reaproximar da natureza, o homem ocidental frequentemente reafirma sua distância. “A Fera” compreende isso, e sua potência está justamente em não oferecer redenção fácil. A selva não perdoa, e tampouco recompensa. Se há sobrevivência, ela é amarga, provisória, marcada por cicatrizes — e talvez por um silêncio incômodo, como se o leão, mesmo vencido, continuasse espreitando de algum lugar dentro de nós.
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