No catálogo da Netflix, uma comédia italiana estrelada pelo filho de Vittorio De Sica que parece saída do universo de Fellini Divulgação / Netflix

No catálogo da Netflix, uma comédia italiana estrelada pelo filho de Vittorio De Sica que parece saída do universo de Fellini

Sob a aparência farsesca que conduz seu enredo, “O Preço da Herança da Vovó” depura um tipo de miséria que escapa aos olhos e resiste aos diagnósticos sociais mais imediatos: a ruína emocional disfarçada de funcionalidade familiar. Trata-se da continuação direta do corrosivo “O Preço da Família”, mas, ao contrário do que se esperaria de uma sequência cômica, Giovanni Bognetti opta por apertar o nó da disfuncionalidade até o limite do grotesco. Mais que rir dos excessos de seus personagens, o filme nos convida a observar como, mesmo nos momentos de união, a lógica da conveniência sempre fala mais alto — seja no apego a um parente rico ou na súbita afeição por um morto conveniente.

Se Tolstói, em seu clássico centenário, distinguia a dor singular das famílias infelizes como traço definidor, aqui esse sofrimento já virou caricatura: é por meio do exagero que a família em questão se revela. A herança, nesse cenário, é só o gatilho que revela fissuras antes apenas sugeridas. Giuliana, figura-tampão entre as esferas do afeto e do interesse, herda não apenas dinheiro, mas a função simbólica de centro gravitacional dos recalques familiares. Os seis milhões de euros que lhe cabem funcionam como ácido sobre uma fachada corroída: não é a cobiça que escancara os personagens, mas o que ela desperta — pequenas vinganças, humilhações protocoladas e alianças nascidas do desespero.

Christian De Sica, herdeiro literal e simbólico de uma linhagem de intérpretes do grotesco italiano, empresta a Carlo uma vibração tragicômica que parece se alimentar da ruína moral que o cerca. Sua esposa, vivida por Angela Finocchiaro, carrega a frieza estratégica de quem aprendeu a sobreviver sem amor, apenas com performance. A dupla de filhos, por sua vez, é feita de sombras projetadas — figuras que preferem seguir à margem da família, mas jamais longe o suficiente para perder alguma vantagem. Giuliana, interpretada com energia desmedida e indiferença às convenções, ainda tenta instaurar algum traço de sinceridade, mas seu impulso é sempre sufocado por uma família que só compreende a linguagem do oportunismo.

Bognetti insere nesse núcleo uma rede de personagens periféricos que agem como elementos de distorção da realidade: Nunzio, o namorado de Giuliana e ex-affair de Anna, insinua camadas de sordidez que desafiam a credibilidade narrativa, mas que jamais soam desproporcionais diante do contexto. Já a aparição de uma ex-atriz chamada a retornar aos palcos com uma versão feminista de Hemingway é mais do que um gesto satírico — é o espelho de um mundo onde até o idealismo vira instrumento de barganha. A encenação da vida como teatro sem ensaio nem plateia volta com força: cada personagem parece cumprir um papel designado pela lógica da conveniência.

O que torna essa comédia tão incisiva é justamente sua recusa em oferecer qualquer zona de alívio. Mesmo nos momentos em que flerta com a ternura, o filme rapidamente recua, como se alertasse o espectador: aqui, nenhum gesto de bondade é gratuito. Fioretta Mari e Ninni Bruschetta, com seus delírios tropicais e utopias de Jericoacoara, expõem o absurdo com uma leveza que só reforça o que há de irrecuperável naquele núcleo familiar — são, paradoxalmente, os que mais sonham e, por isso mesmo, os mais distantes da verdade trágica da trama.

No fim, “O Preço da Herança da Vovó” não entrega redenção nem aprendizado. Mas o que oferece, com precisão desconcertante, é um retrato de uma engrenagem emocional corroída que se mantém girando por inércia e interesse. Quando tudo vira moeda — laços, corpos, memórias — resta ao espectador apenas a amarga constatação de que, em certos círculos, o afeto é sempre um investimento de risco.

Filme: O Preço da Herança da Vovó
Diretor: Giovanni Bognetti
Ano: 2024
Gênero: Comédia
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★