Esqueça os boletos, a segunda-feira e o trânsito: essa comédia da Netflix é pausa, riso e alívio Divulgação / Dreamworks Pictures

Esqueça os boletos, a segunda-feira e o trânsito: essa comédia da Netflix é pausa, riso e alívio

No universo rarefeito das relações humanas, onde o valor de alguém é constantemente medido por métricas tão grotescas quanto um sistema de classificação estética, ainda há quem ouse remar contra a corrente. São poucos, mas existem — os que ignoram cifras bancárias, escudos sociais ou curvas corporais, e se ocupam daquilo que verdadeiramente sustenta um laço duradouro: substância emocional. Só que esse olhar mais agudo, menos distraído por ornamentos externos, é quase sempre recebido com zombarias ou reprovações. Para uma sociedade que celebra a aparência com fervor de seita, a ideia de dois indivíduos desiguais — aos olhos dela — construindo intimidade, parece uma heresia. E como toda heresia, há de ser punida com escárnio, testes de resistência e questionamentos impiedosos.

É nesse terreno pantanoso que a comédia romântica dirigida por Jim Field Smith decide firmar o pé. Mas ao invés de partir para a defesa idealista de um amor impossível, ela afia o riso como instrumento crítico. A leveza do tom contrasta com a contundência do que está sendo desmontado: a obsessão coletiva por normas estéticas e as falsas hierarquias sentimentais. O protagonista, um sujeito pacato que parece já ter aceitado o próprio lugar no rodapé da escala amorosa, vive uma crise silenciosa diante da possibilidade de ser visto — por alguém e por si mesmo — como alguém digno de afeto. E se o roteiro de Sean Anders e John Morris flerta com o absurdo, é apenas para ilustrar o quanto a lógica social que rege os afetos pode ser mais inverossímil do que qualquer ficção.

Esse homem, um fiscal da TSA que leva sua rotina no aeroporto com a devoção de quem cumpre penitência, tornou-se refém das vozes que zombam da sua timidez e sabotam sua autoestima. A equação que adota para se classificar é digna de um mercado de usados: nota cinco, nem muito ruim, mas longe do razoável. Parte dessa autoimagem deformada é alimentada por um grupo de amigos cuja lealdade não anula a superficialidade. O mérito do filme está em não caricaturar essas figuras; ao contrário, elas evoluem — ainda que timidamente — revelando camadas que ultrapassam os arquétipos habituais do gênero. Essa dinâmica entre os personagens vai tecendo uma atmosfera familiar, o tipo de enredo que não se assenta na idealização, mas na honestidade das fragilidades.

T.J. Miller, com seu carisma rabugento, injeta à trama um cinismo hilário e necessário, funcionando como contraponto ao idealismo algo melancólico de Jay Baruchel. A química entre os dois sustenta momentos de desconstrução quase filosófica, em que temas como insegurança e merecimento afetivo são debatidos com a leveza de quem não tem a pretensão de oferecer respostas, apenas provocar o incômodo certo. E então, em meio à rotina cinzenta do aeroporto, a aparição súbita de uma mulher deixa o roteiro em estado de suspensão. Um telefone esquecido, um gesto casual, e a engrenagem narrativa começa a se movimentar — não em direção a um conto de fadas, mas a um duelo interno que exige mais coragem que qualquer aventura épica.

É verdade que o enredo derrapa ao insistir em certas coincidências forçadas, como a presença da ex-namorada do protagonista no mesmo ambiente de trabalho, o que enfraquece um pouco o sentido de verossimilhança. Mas essa falha pontual não compromete o cerne da história: um homem tentando se libertar de um passado que o encolhe sempre que tenta se expandir. A relação que nasce entre ele e Molly, a mulher que parecia inalcançável, não escapa aos ruídos previsíveis — mas não se prende a eles. Ao contrário, expõe os embaraços e os silêncios que atravessam os encontros reais, onde a intimidade não é conquista imediata, mas processo paciente.

Alice Eve, no papel da mulher que poderia ser apenas um fetiche idealizado, escapa da armadilha com uma atuação cheia de nuances. A cena do quarto, em que revela uma pequena malformação física com uma franqueza desarmante, quebra o feitiço justamente para instaurar algo mais valioso: a possibilidade de se olhar de verdade. Não há ali uma lição mastigada sobre empatia ou autoaceitação, mas uma exposição crua daquilo que muitas relações não suportam — a imperfeição explícita. E se o desfecho se inclina para o terreno da reconciliação emocional, o que realmente fica é a provocação: o que exatamente faz alguém acreditar que não merece ser amado?

O filme, disponível na Netflix, não alardeia virtudes revolucionárias, mas cumpre, com inteligência disfarçada de simplicidade, uma tarefa cada vez mais rara: provocar reflexão por meio do riso. Seu mérito está em transformar um enredo previsível em um espelho delicado de inseguranças coletivas, sem recorrer a lições edificantes nem metáforas grandiosas. Ao final, a pergunta que ecoa não é se o casal vai ficar junto, mas se estamos prontos para abandonar as tabelas imaginárias que determinam quem vale quanto no mercado do afeto. A resposta, claro, não está na tela — está na forma como rimos das cenas, e no desconforto que o riso nos deixa.

Filme: Ela É Demais Para Mim
Diretor: Jim Field Smith
Ano: 2010
Gênero: Comédia/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★