O filme que parecia ficção — mas aconteceu de verdade. E vai te deixar desconfortavelmente hipnotizado, com Natalie Portman e Julianne Moore no Prime Video Divulgação / Netflix

O filme que parecia ficção — mas aconteceu de verdade. E vai te deixar desconfortavelmente hipnotizado, com Natalie Portman e Julianne Moore no Prime Video

Há histórias que parecem resistir ao tempo apenas para nos lembrar que a fronteira entre transgressão e fetichismo moral nunca foi tão tênue. Em 1996, uma mulher de 34 anos, mãe de quatro filhos e professora do ensino fundamental, foi surpreendida por policiais em circunstâncias que não permitiam dúvidas: Mary Kay Letourneau mantinha um envolvimento com um aluno de apenas doze anos. A prisão, a condenação, o escândalo que cruzou fronteiras legais e éticas e, anos mais tarde, o improvável casamento com o mesmo menino — agora homem — tornaram-se matéria-prima não apenas para tabloides, mas para um debate que, até hoje, embaraça os alicerces do juízo coletivo. Em “Segredos de um Escândalo”, Todd Haynes usa essa matéria inflamada como combustível para algo muito mais complexo que uma reencenação: uma dissecação em tempo real da dissonância moral contemporânea.

Haynes não pretende reconstruir o passado literal de Letourneau, mas sim adensar as rachaduras do presente por onde vazam as contradições do desejo, da culpa e da memória. A história, aqui, encontra em Gracie Atherton-Yoo e Joe Yoo um novo molde: uma ex-professora e seu ex-aluno, agora casados e com filhos, vivendo uma rotina meticulosamente insossa em Savannah, na Geórgia. Gracie é o que restou depois da explosão — uma mulher que decora bolos para vizinhos e organiza churrascos com precisão quase litúrgica. Até que chega Elizabeth Berry, atriz jovem e aparentemente encantada pela figura que pretende interpretar em um filme. Esse encontro inicia não apenas uma reconstituição dramatúrgica, mas um duelo ritualizado de manipulações, fraturas e verdades malditas. A intrusão de Elizabeth não é casual: ela atua como catalisadora, desmontando o frágil equilíbrio daquele núcleo e expondo uma encenação ainda mais sombria por trás do que parecia ser apenas uma convivência esquisita.

A força do texto de Samy Burch e Alex Mechanik está justamente na recusa ao didatismo: não há flashbacks, nenhuma cronologia expositiva ou tentativas de justificar o imperdoável. Toda a história anterior ao tempo presente é invocada apenas pelo olhar, pela hesitação, pelos silêncios incômodos que se instauram quando a presença de Elizabeth começa a produzir fissuras nas máscaras de Gracie e Joe. Julianne Moore, num desempenho implacável, constrói uma Gracie que jamais se vitimiza — ela se afirma com uma altivez doentia, sempre no controle das narrativas ao seu redor. Mas é Natalie Portman, no papel da atriz que tenta “absorver” sua personagem, quem promove o verdadeiro abalo sísmico: seu olhar parece sempre dividido entre a fascinação e a repulsa, e é justamente nesse espaço contraditório que o filme respira.

Se o longa se articula como um drama, seu motor é um sofisticado jogo de espelhamentos. A sequência em que Gracie ensina Elizabeth a se maquiar, por exemplo, é mais do que uma cena íntima entre duas mulheres: é um rito de transferência, um teatro de duplicações em que a maquiagem se torna apenas mais um véu a ser erguido. O filme inteiro se sustenta nesse campo liminar entre o que é representado e o que é vivenciado, entre o gesto e o abismo que ele esconde. Não por acaso, o universo de Joe — interpretado com camadas inesperadas por Charles Melton — é povoado por lagartas, crisálidas e borboletas-monarca. Esse detalhe, longe de ser alegoria simplista, funciona como comentário cruel: as transformações de Joe são involuntárias, biológicas, quase zoológicas — ele é, desde sempre, o objeto moldado pelas vontades alheias.

Gracie, por sua vez, não mudou. Talvez tenha se adaptado, talvez tenha aprendido a coreografia do arrependimento socialmente aceitável, mas sua essência permanece intacta. A figura de Georgie, filho do casamento anterior de Gracie, é o lembrete incômodo de que as vítimas não desaparecem — elas se espalham. A cena de seu confronto com a mãe expande as camadas morais do filme e desloca o eixo do enredo para além da relação central, sugerindo que as consequências desse tipo de perversão não se encerram com perdões, sentenças ou uniões legalizadas.

Mas Haynes não busca choques fáceis. Sua mise-en-scène evita a espetacularização do grotesco e prefere o constrangimento duradouro ao escândalo imediato. Sua direção contorna a lógica do tribunal moral e mergulha, com precisão cirúrgica, nas zonas cinzentas de uma sociedade que consome narrativas de transgressão enquanto exige punição exemplar. “Gente insegura é perigosa”, diz Gracie a Elizabeth — mas o filme inteiro poderia ser lido como um lembrete de que pessoas que têm certeza demais também são.

Não há redenção fácil, nem vilanias reconfortantes. O que Haynes propõe é um labirinto onde a monstruosidade pode ser doce, hospitaleira e perfeitamente funcional. E, ao fim, talvez o mais inquietante não seja o crime em si, mas o pacto de silêncio, o verniz de normalidade, a naturalização do abismo. Nada é tão perigoso quanto aquilo que parece já ter sido assimilado.

Filme: Segredos de um Escândalo
Diretor: Todd Haynes
Ano: 2023
Gênero: Drama/Suspense
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★