No centro daquilo que costumamos chamar de cotidiano, há um ruído persistente que nos obriga a seguir adiante como se não escutássemos o que grita dentro. “Gente que Vai e Volta” parte dessa dissonância íntima para construir um relato sobre o esgotamento emocional disfarçado de normalidade, onde os afetos não têm lugar fixo e as certezas são devoradas pelo inesperado. A diretora Patricia Font recusa o consolo do melodrama fácil e investe numa narrativa que expõe as rachaduras da estabilidade adulta sem recorrer à histeria ou à piedade como muleta. Seu gesto é mais cirúrgico: cortar onde dói, mas sem alarde.
Baseado no romance “Gente que Viene y Bah”, de Laura Norton — alter ego de uma autora que se recusa a ser vista, talvez por desconfiar que o nome atrapalha mais do que afirma —, o roteiro assinado por Darío Madrona e Carlos Montero mantém o humor agridoce do material original, mas escolhe outro tom. É menos sobre paixões arrebatadoras do que sobre as ruínas deixadas por decisões mal digeridas. Font direciona o olhar para aqueles que não sabem bem para onde estão indo, mas também não suportam mais ficar onde estão, abrindo espaço para uma reflexão pungente sobre a mecânica do recomeço.
Bea, interpretada com precisão por Clara Lago, encarna esse deslocamento. É uma mulher moldada por ausências — a do pai errante, do amor idealizado, da carreira construída com zelo e subitamente solapada. Arquitetura, no seu caso, não é apenas profissão: é um modo de tentar organizar o caos. A diretora evita transformá-la em vítima ou heroína, preferindo a ambiguidade de quem fracassa sem colapsar por completo. O pedido de casamento feito por Victor, colega de trabalho e parceiro afetivo, surge como uma promessa de estabilidade, mas o que vem a seguir é uma ferida pública: a traição noticiada em tempo real, como se fosse parte da rotina corporativa.
Essa exposição de intimidades fora de controle funciona como um catalisador. Bea não apenas perde o emprego: perde a ilusão de que poderia separar vida privada e ambição profissional sem pagar caro por isso. Sua resposta, no entanto, não é uma crise explosiva — é a suspensão de um projeto de futuro que parecia certo. Ela retorna à cidade natal, não como quem foge, mas como quem precisa reenquadrar a própria narrativa antes que tudo se torne irrecuperável. Lá, reencontra vínculos, desafetos e um modo diferente de habitar o tempo: mais improvisado, menos performático.
Diego, vivido por Álex García com um charme despretensioso que beira o deboche, aparece como contraponto direto ao mundo de onde Bea veio. Ao contrário de Victor, não disfarça os próprios desejos com verniz de civilidade. Se o primeiro encarna a masculinidade do cálculo, o segundo representa o impulso vital, ainda que envolto em projetos questionáveis e um Mercedes vintage que parece saído de uma farsa. A química entre ele e Bea não é instantânea, mas construída aos poucos, num território onde o ridículo e o encantamento se confundem. Font não força o romance: permite que ele aconteça em silêncio, nos espaços em que sobra alguma espontaneidade.
Carmen Maura, como a matriarca que observa tudo com ironia e afeto contido, reforça o tom agridoce da narrativa. Sua presença é menos um enfeite do que um lembrete: por mais que tentemos, ninguém escapa da própria história — apenas aprende a rir dela com alguma dignidade. À medida que o filme avança, abandona as promessas de reviravolta para apostar numa transformação mais subterrânea, quase imperceptível. Não há redenção espetacular, tampouco uma resposta definitiva sobre o que fazer com a dor.
“Gente que Vai e Volta” se recusa a ser definido por sua previsibilidade. Ainda que transite por situações conhecidas, nunca entrega aquilo que se espera exatamente como se espera. É um filme que compreende que a verdadeira virada nem sempre vem de fora — às vezes, ela se dá quando deixamos de fingir que estamos bem. E nesse gesto, tão discreto quanto irreversível, há mais potência do que em qualquer clímax inventado.
★★★★★★★★★★