Do mesmo diretor de Anora, a comédia mais inteligente (e deliciosamente errada) da Netflix para maiores de 18 Divulgação / A24

Do mesmo diretor de Anora, a comédia mais inteligente (e deliciosamente errada) da Netflix para maiores de 18

A força destrutiva de uma ideia ultrapassada pode ser mais perversa do que sua ausência. Em “Red Rocket”, Sean Baker realiza mais do que um retrato social — ele encena, com precisão desconfortável, a capacidade que os EUA têm de transformar seus destroços em espetáculo. Mikey Saber, o protagonista que retorna ao Texas como uma ruína ambulante da indústria pornográfica, não busca redenção. Ele busca plateia. E encontra. Em uma América corroída por ressentimento, nostalgia e oportunismo, o fracasso vira moeda, e a decadência, quando bem performada, é quase irresistível. Não à toa, o pano de fundo da narrativa é o ano de 2016, quando Donald Trump, ele próprio uma caricatura reciclada do self-made man, ascendia ao poder pela via da indignação fabricada. O “foguete vermelho” do título é menos uma alusão ao corpo de Mikey e mais uma metáfora da trajetória nacional: um impulso cego rumo a lugar nenhum.

O retorno de Mikey à sua cidade natal não é um recomeço, mas uma recaída. Sem dinheiro, sem dignidade e sem o menor vestígio de autocrítica, ele se reinstala na casa da ex-mulher, Lexi, e de sua sogra, não por afeto, mas por ausência de alternativas — ou melhor, por sua recusa em lidar com alternativas que exigiriam esforço real. Essa dinâmica de exploração emocional camuflada de carisma é o motor da narrativa. Baker, com seu estilo visual cru e a textura granulada da película em 16 mm, capta a precariedade como matéria estética e moral. A cidade — Texas City — não é apenas cenário, mas uma extensão física da alma dos personagens: entulhada de promessas não cumpridas, fachadas improvisadas e sobrevivências negociadas. A câmera, quase documental, espreita esse universo como quem sabe que nada ali é espontâneo — tudo é performance, até mesmo a ruína.

E se Mikey se apresenta como o mestre de cerimônias desse teatro decadente, ele o faz explorando cada relação ao seu alcance. Quando percebe que o mercado formal o rejeita por seu histórico na pornografia, ele se reconfigura como traficante amador, servindo a Leondria, figura ambígua que simboliza a institucionalização da ilegalidade nas margens. Essa transição — da pornografia para a droga — não representa uma ruptura, mas uma continuidade lógica: ambos os mercados exploram corpos e fantasias alheias por lucro imediato. A diferença é que agora Mikey age sem câmeras, mas com a mesma coreografia de sedução e mentira. Lexi, por sua vez, é o espelho mais cruel de sua trajetória. Subjugada, ressentida e ainda emocionalmente presa a ele, é a prova viva de que Mikey não apenas destrói a si mesmo — ele contamina o espaço ao redor, como um vazamento tóxico que ninguém consegue conter.

A irrupção de Morango, a adolescente de 17 anos que trabalha em uma loja de rosquinhas, oferece um falso ponto de virada. Para Mikey, ela é mais do que um interesse amoroso — é um projeto. Enxerga nela não apenas juventude e beleza, mas o potencial de ser sua nova moeda de retorno à indústria que o descartou. A câmera de Baker, no entanto, não se deixa seduzir pela fantasia. Ao contrário: ela denuncia a assimetria de poder com frieza. Morango não é salva nem corrompida — ela existe em tensão, entre o desejo de ser notada e o instinto de autopreservação. Mikey, incapaz de perceber qualquer subjetividade que não a própria, projeta nela um futuro que não lhe pertence. E, ao fazer isso, reafirma seu padrão: não constrói, apenas consome. E depois culpa os escombros.

Há ainda um personagem que resume com precisão o impacto corrosivo de Mikey: Lonnifer, vizinho de Lexi, ingênuo e vulnerável, que acaba sendo tragado pela presença destrutiva do protagonista. Sua trajetória colapsa silenciosamente, sem dramatização, como tudo em “Red Rocket”. Baker compreende que o caos mais devastador não é o que explode, mas o que apodrece lentamente, com aparência de normalidade. Por isso, sua estrutura narrativa rejeita clímax e redenção. O filme não oferece catarse porque sabe que seus personagens não têm onde chegar — eles apenas circulam, orbitando a falência como satélites de um planeta extinto.

Quando “Bye Bye Bye”, do ‘N Sync, irrompe na trilha sonora, não é nostalgia — é sarcasmo. Mikey não está se despedindo de nada. Ele está voltando, sempre voltando, porque o fracasso, na América de “Red Rocket”, não é fim. É formato. A estética do retorno triunfal foi apropriada até mesmo pelos que jamais triunfaram. E, enquanto isso for verdade, haverá espaço para figuras como Mikey — seres que se recusam a desaparecer porque sabem que, neste teatro, cair é apenas mais um ato.

Filme: Red Rocket
Diretor: Sean Baker
Ano: 2021
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★