Dostoiévski sempre escreveu contra a ilusão. “Noites Brancas” é a obra em que ele a examina com mais ternura. Publicada sob forte influência do romantismo, a novela se estrutura como delírio prolongado. Tempo, espaço e subjetividade dissolvem-se em um estado de suspensão. Esse limbo transparece na ambientação — as noites brancas de São Petersburgo, quando a escuridão nunca se completa — e na figura do Sonhador, cuja existência se dá menos na realidade do que em projeções íntimas.
A narrativa antecipa questões que Dostoiévski
aprofundaria em “Memórias do Subsolo” e “O Idiota”: a oposição entre ideal e real, a hesitação como forma do pensamento e a impotência diante da vida. Não se trata de um produto do romantismo tardio, mas de um ponto de transição, onde o sentimentalismo cede lugar à inação existencial.
Diferente do romantismo convencional, que exaltava a pureza emocional e o amor sublime, Dostoiévski esvazia o amor de substância, reduzindo-o a exercício unilateral de fantasia. O Sonhador não se apaixona por Nástienka enquanto mulher real, mas como ideia, reflexo de sua necessidade de significação. Essa inversão da lógica romântica aproxima “Noites Brancas” da modernidade.
A narrativa como suspensão temporal e espacial
A São Petersburgo de “Noites Brancas” não é a cidade real. Surge rarefeita, filtrada pelo olhar de quem vive mais na imaginação do que na experiência. O espaço urbano ressoa o conceito de “cidade-texto” de Yuri Lotman, da obra “A Estrutura do Texto Artístico”, onde a cidade se converte em signo que organiza a subjetividade dos personagens.

A alienação espacial se soma à temporal. A trama se desenrola em quatro noites de verão, quando o sol nunca se põe, criando a ilusão de tempo suspenso. Essa dilatação reforça a impressão de que o Sonhador vive à margem da vida, preso a um presente que nunca se concretiza. Comparada à São Petersburgo sufocante de “Crime e Castigo”, onde a cidade é uma extensão da culpa de Raskólnikov, em “Noites Brancas” ela se torna palco de espectros, reflexo etéreo da condição do protagonista.
Walter Benjamin, em “Passagens”, descreve a figura do flâneur, o observador urbano que consome a cidade como espetáculo. O Sonhador poderia ser um flâneur, mas lhe falta um elemento essencial: não interpreta o mundo, dissolve-se nele. Enquanto o flâneur caminha para descobrir, o Sonhador caminha para esquecer. Essa diferença é crucial. Ele não é um homem na cidade, mas um fantasma que a percorre sem tocá-la.
Dostoiévski atribui a cada protagonista uma relação singular com São Petersburgo. Raskólnikov vê nela um labirinto opressivo; Stavróguin, em “Os Demônios”, enxerga um palco de degradação moral. O Sonhador experimenta a cidade como não-lugar, espaço transitório onde nada se fixa. Sua trajetória é marcada pela ausência de pertencimento: não tem história, raiz ou passado.
Na tradição literária, ressoa a inação de “Oblómov”, de Gontcharóv, mas com uma melancolia mais introspectiva. Se Oblómov é corpo paralisado pela letargia, o Sonhador é consciência que flutua sem substância. Ambos substituem a ação pelo devaneio, mas enquanto Oblómov aceita essa condição com resignação, o Sonhador a experimenta como angústia difusa, oscilando entre felicidade momentânea e desespero silencioso.
Schopenhauer, em “O Mundo Como Vontade e Representação”, fornece um arcabouço filosófico para entender essa dinâmica: o desejo sempre conduz à frustração, pois ou não se realiza e causa sofrimento, ou se realiza e se torna tédio. O Sonhador permanece na primeira metade dessa equação. Deseja, jamais possui, pois seu desejo está mais ligado à idealização do que à concretização.
Kierkegaard, em “O Conceito de Angústia”, descreve a hesitação como paralisia do espírito diante do infinito das possibilidades. O Sonhador encarna essa paralisia. Não teme perder Nástienka, mas o fim da ilusão que a mantém idealizada. Se tentasse convertê-la em relação concreta, a fantasia perderia seu poder, e a realidade se imporia com brutalidade insuportável.
A dissolução do sujeito na forma narrativa
Essa estrutura psicológica se reflete no tom da narrativa. Como observa Bakhtin em “Problemas da Poética de Dostoiévski”, o autor russo é mestre do polifonismo, mas “Noites Brancas” se distancia dessa tradição. Aqui, não há múltiplas vozes. Há apenas o fluxo de consciência do Sonhador, que transforma a narrativa em extensão de sua mente solitária.
Isso aproxima a novela de “Memórias do Subsolo”, onde o protagonista também constrói um mundo interior isolado da realidade. A diferença é que “Memórias do Subsolo” se rebela contra essa condição, ironiza e ataca o mundo, enquanto o Sonhador se entrega docilmente à ilusão. Não é cínico, mas sentimentalista, à beira da dissolução.
Dostoiévski, ao longo da carreira, produziria protagonistas cada vez mais complexos e torturados. O Sonhador se destaca por ser o mais transparente. Sua fragilidade está dada desde o início. Não experimenta o conflito, mas a expectativa e a decepção. Não luta contra o destino, aceita seu peso com melancolia resignada.
Isso faz de “Noites Brancas” um experimento singular. Se em obras posteriores Dostoiévski investigaria personagens que desafiam Deus, a moral e a sociedade, aqui temos um protagonista que sequer se desafia a existir. Sua tragédia não é a culpa ou o crime, mas a ausência de ação, a incapacidade de sair da própria mente.
A novela ocupa um território híbrido: não é romance de formação, pois o protagonista não evolui, e não é tragédia, pois não há clímax real. É um estudo sobre a espera como condição existencial — uma espera que nunca se resolve, pois aquilo que se aguarda talvez nunca tenha existido.
O encontro com Nástienka: amor e epifania efêmera
O encontro com Nástienka rompe a solidão do Sonhador, sem inseri-lo de fato na realidade. Para ele, parece epifania, instante em que o destino conspira para oferecer algo tangível. Essa experiência não segue a lógica romântica da descoberta gradual. Não há conquista, amadurecimento do sentimento. O amor surge no instante, como se já estivesse pronto e aguardasse um rosto para se projetar.
A relação entre os dois se constrói sobre desequilíbrio profundo. O Sonhador vê em Nástienka a possibilidade de realização de um desejo sempre abstrato. Ama-a não pelo que é, mas pelo que representa: passagem da imaginação para a vida, ponte entre solidão e pertencimento. Para Nástienka, ele não ocupa esse lugar. Não é ideal, mas refúgio momentâneo, espaço seguro para compartilhar angústias enquanto espera pelo verdadeiro objeto de desejo.
Essa assimetria se reflete na comunicação. O Sonhador escuta, absorve, se alimenta da narrativa de Nástienka sem interagir de forma genuína. “Noites Brancas” não realiza a polifonia de Bakhtin. Os personagens falam, mas nunca dialogam. Ele a vê como símbolo; ela o vê como meio.
Esse desencontro coloca a relação em plano de irrealidade. O Sonhador não deseja Nástienka em sua complexidade, mas a sensação de ser desejado. Seu amor é fenômeno solipsista. Schopenhauer argumenta que o desejo, quando dirigido a um ideal e não a um objeto real, torna-se autodestrutivo. O Sonhador não se apaixona por Nástienka, mas pela ideia do amor projetado nela.
A ironia do encontro: ele não altera a trajetória do protagonista. Em romances de formação, o amor impulsiona a transformação do personagem. Aqui, esse mecanismo falha. O Sonhador não aprende, cresce ou se modifica. O amor, em vez de experiência concreta, se dissolve na expectativa. Ele não quer vivê-lo, quer continuar ansiando por ele.
O desfecho confirma essa lógica. Nástienka reencontra o homem esperado, retorna à realidade. O Sonhador volta ao ponto de partida, carregando o peso de uma lembrança não concretizada. Antes, vivia na expectativa do possível; agora, na nostalgia do impossível.
O que torna esse final devastador não é a perda de Nástienka, mas a constatação de que nunca houve nada para perder. O Sonhador não foi rejeitado — nunca foi possibilidade real. A narrativa que construiu para si mesmo desmorona, pois sua estrutura sempre foi frágil. Não é um protagonista que percorre um arco dramático, mas espectador: vê-se expulso da própria ficção.
O sarcasmo final está na gratidão. Em vez de se revoltar, sentir-se traído ou injustiçado, o Sonhador agradece. Esse gesto pode ser lido de diferentes formas. Superficialmente, parece aceitação do destino. Em nível mais profundo, confirma a condenação. Ele não agradece por ter amado, mas por ter imaginado que amava; não lamenta a perda, pois a memória é mais preciosa do que a experiência.
Essa resignação se aproxima do conceito de eterno retorno, de Nietzsche. Para o filósofo, o eterno retorno não é repetição dos eventos, mas aceitação da vida em seus ciclos inevitáveis. O Sonhador está condenado a repetir sua solidão, reviver sua lembrança, apegar-se ao que nunca foi. Sua experiência não é aprendizado, é reafirmação de que seu lugar é à margem da vida, não dentro dela.
A memória se torna o verdadeiro antagonista. Em “Em Busca do Tempo Perdido”, Proust descreve a memória como fenômeno instável, reconstruindo o passado a partir do presente e tornando-o ficção mais real que a vida. O Sonhador passa a habitar essa ficção. Seu amor, nunca consumado, será lembrança idealizada. Ele não perdeu Nástienka; perdeu a si mesmo na ilusão de que poderia tê-la.
A solidão como estrutura filosófica
“Noites Brancas” é obra de transição. Nos romances posteriores, Dostoiévski aprofundaria dilemas morais, religiosos e políticos; aqui, traça um retrato da solidão como destino. O Sonhador não é criminoso como Raskólnikov, nem messias ingênuo como Míchkin, nem niilista como Stavróguin. Dissolve-se na própria espera.
Dostoiévski antecipa um traço essencial da modernidade: a substituição da experiência pela expectativa. Num mundo onde o desejo é projetado para um futuro inalcançável, o presente se torna vazio. O Sonhador encarna essa lógica: não quer viver, quer continuar desejando. Sua tragédia não é o amor perdido, é a impossibilidade de abandonar a ilusão.
Se o romantismo celebrava o desejo como impulso nobre, “Noites Brancas” desmonta essa noção. O desejo não leva à realização, mas à condenação. O Sonhador não é melancólico por si só; é sintoma de uma era onde a esperança se converte em ciclo vicioso, armadilha sem escapatória.
Esse diagnóstico não se aplica apenas à literatura. Fala da própria condição humana. Quantos não vivem presos à promessa do que poderia ser? Quantos, como o Sonhador, confundem expectativa com existência? Dostoiévski nos deixa um espelho incômodo, e a tendência, claro, é recusá-lo.
A noite branca passa, o sol nasce, a pergunta permanece: quem sobrevive ao dia?