Aprendi a dar tiro com o meu velho. Latas de óleo de soja vazias sobre uma pedra de tapiocanga. Insucesso total para se atingir o alvo. Nunca havia pedido para apertar o gatilho. A iniciativa partiu dele, que me apertou: “Seja homem, aponte com firmeza e atire…”. Talvez fizesse parte do intrincado processo de educação da prole, como trabalhar durante a temporada de férias escolares, escalar as porteiras do curral e jamais deixar sobrar comida no prato. “Serviu, tem que comer tudo…”
Meus tímpanos quase infantis zuniam. Não tomei gosto pelas armas. Muito menos, pelos cigarros Arizona que fumávamos — sem tragar — na beira do córrego, a fim de espantar as muriçocas. Pescávamos bagres, lambaris, cascudos e enguias. Que medo de tomar choque elétrico. Também não peguei gosto em fumar. Pesco raramente, pois, na vida adulta, em certa medida, tomei dó de peixe. A intenção era mesmo repelir pernilongo. Vida curta dos diabos. Que nada. Parece que foi ontem. Parece que foi tudo.
Meu pai não fumava e nunca deu tiro em ninguém. Ao contrário de seu pai. Reza a lenda que o pai de meu pai despachou dois ou três endemoninhados para o quinto dos infernos, numa época em que os homens eram mais homens, as mulheres eram menos mulheres e parte considerável das desavenças era resolvida sob o jugo do cano fumegante de um revólver.
Um dia, dominado pela pilha de nervos provocada pela Doença de Chagas, o meu velho correu até a sede da fazenda, catou o 38 e disparou um pipoco certeiro na fronte do boi tinhoso que estava apartado das demais reses. Ninguém entendeu nada. Foi uma cena bestial que redundou num baita prejuízo financeiro e emocional. A gente tinha assistido à execução sumária, mal calculada, do único reprodutor do rebanho. Como dívida impagável, o meu velho ficou com aquele ato de bruteza arquivado na gaveta da memória. Só sossegou depois de morto. Volta e meia, arrebatado pelo mea-culpa, ele se lembrava com pesar da execução estúpida. Abater o touro de raça não aplacara em nada a sua ira, uma vez que as firmes convicções do animal sucumbiram juntamente com ele.
Portanto, tive na meninice oportunidades de sobra para me afeiçoar às armas de fogo e ao tabagismo. No outro braço familiar, assistir ao meu avô materno preparando um cigarro de palha, com a paciência de um monge budista, era um acontecimento e tanto. O ponto alto do processo de produção consistia em acender o palheiro com uma binga. Que espetáculo. Que cheiro gostoso de fumaça. Apesar de muito apreciar o aroma adocicado do fumo-de-corda, ainda assim, não fui aplacado pelo vício. O velhote também se divertia ao testar a própria mira atirando em alvos inanimados com o seu revólver de empunhadura branca, feita de madrepérola.
Um dia, cheio de desinibição, perguntei se podia ficar com a arma, depois que ele morresse. Após sorrir, pigarrear e cuspir uma saliva grossa com rajas de fuligem, ele afirmou que teria enorme gosto em me presentear com o pau-de-fogo, contudo, antes de mais nada, lamentavelmente, tinha prometido deixá-lo para o Fúlvio, que era o filho mais velho do peão e que tinha feito o pedido antes de mim. Anos mais tarde, soube-se que o Fúlvio se matou com um tiro na têmpora, usando a herança do meu avô de forma intempestiva, desesperada, como se fosse um boi tinhoso sem conserto.
Acabei agraciado com o antigo relógio de bolso, prateado, a coisa mais linda de se ver. Aliás, um objeto que tem sido de enorme valia para contar quanto tempo ainda me resta antes de esquecido, que nem aquele retrato na estante de alguém, de que falava o poeta.
“Um dia, seremos apenas um retrato na estante de alguém. Depois, nem isso” — frase da autoria do artista plástico Telomar Florêncio.