No submundo dos horrores sociais, alguns filmes não pedem permissão para assustar — eles o fazem com um prazer cruel e um domínio desconcertante da ambiguidade moral. A nova versão de “Não Fale o Mal”, agora sob a direção meticulosa de James Watkins, parece menos interessada em reinventar o material original de Christian Tafdrup do que em corroê-lo até expor a carne viva por baixo. Watkins não suaviza os cantos; ele os afia. E, ao contrário dos sustos plastificados de produções padronizadas, aqui o desconforto é cultivado com frieza, na mesma temperatura gélida do campo inglês onde a trama se enraíza. Não há condescendência com o espectador: o filme exige estômago e, principalmente, a disposição para admitir que a civilidade pode ser a casca mais fina do inferno.
Se há um ponto de partida aparentemente idílico, é apenas para melhor armar a armadilha. Ben e Louise, o casal americano recém-transplantado em solo britânico, chegam à Toscana com a filha, Agnes, como se a viagem fosse uma tentativa de recuperar a leveza que a vida lhes sonegou. Em meio a vinhedos e estátuas, cruzam o caminho de Paddy, sua mulher Ciara e o filho Ant — figuras carismáticas à primeira vista, mas que logo se revelam como vetores de uma dissonância que não pode ser nomeada sem perder sua força. O mutismo de Ant opera não como simples traço, mas como catalisador de um desconforto que se infiltra pela narrativa como veneno silencioso. Aparentemente banais, os gestos, os silêncios e até as gentilezas da família anfitriã escancaram aquilo que mais apavora: a cortesia como máscara da crueldade.
A genialidade de Watkins está em tensionar até o limite a convivência entre hóspedes e anfitriões, deixando claro que o horror não se instala de uma só vez — ele se insinua. Cada cena carrega o peso de um gesto mal interpretado, de um sorriso largo demais, de um convite que parece inocente até se revelar coercitivo. A floresta que circunda a casa, o lago onde as crianças nadam, os jantares regados a vinhos e tensões não verbalizadas: tudo converge para a desconstrução da confiança. A violência, quando chega, não é uma ruptura, mas a consequência lógica de uma sequência de transgressões sutis às regras do bom senso. Não se trata de monstros, mas de gente — e é isso que dilacera.
McAvoy e Franciosi, como o casal anfitrião, transitam entre o charme e a ameaça com precisão hipnótica. Nada neles é gratuito, ainda que tudo soe espontâneo. A fronteira entre hospitalidade e invasão, entre convivência e sequestro emocional, é minada passo a passo, até não sobrar chão. McNairy e Davis, no papel dos convidados, evitam a caricatura da ingenuidade para dar lugar à hesitação genuína, àquela incapacidade paralisante de reconhecer o perigo quando ele veste roupas sociais e oferece chá. O público, mais atento, percebe as bandeiras vermelhas antes deles — e é justamente essa impotência diante do óbvio que transforma a experiência em algo torturante.
A versão de Watkins não está preocupada em fazer justiça ao original; ela quer nos humilhar com a constatação de que a complacência é uma das faces mais letais da covardia. E, nesse sentido, o filme atinge sua plenitude quando recusa qualquer redenção. Ao final, não há mensagem de superação nem catarse. O que sobra é a cicatriz: a lembrança de que o verdadeiro terror raramente grita — ele cochicha, educado, até ser tarde demais para reagir.
★★★★★★★★★★