As mutações pelas quais passa o Brasil hoje deixam a maioria dos observadores sem entender o rumo do país. Alguns arriscam dizer que estamos num momento de “queda do Império Romano”. Os hábitos mudam, as escolhas religiosas também se deslocam, e a sensação de uma vida ruim está na conversa trivial com o vizinho de porta, o motorista de aplicativo, a moça que atende na padaria. “Todos estão surdos”, cantaria de novo Roberto Carlos, e falam sem parar em canais de WhatsApp e perfis no Instagram.
Nesse ambiente, brota a experiência do teatro da Companhia do Latão. Seus integrantes, reunidos em torno de Sérgio de Carvalho, dizem que as coisas brasileiras dos últimos 30 anos jamais foram naturais. Segundo eles, que começaram a trabalhar juntos em 1997, é preciso desdramatizar o país e o mundo. As transformações têm razão de ser e estão conectadas à multiplicidade de tempos. Por isso, as peças do Latão parecem um jorro de referências que surgem no palco e rondam a cabeça depois do espetáculo.
É tudo menos uma sociedade espetacularizada (no sentido da alienação) o que se vê numa peça como “A Banda Épica na Noite das Gerais”, que ficou em cartaz em São Paulo nos meses de fevereiro e março. Assistir às histórias do Latão é experimentar o que o teatro tem de único: aquele momento que não vai se repetir, sobretudo quando se tem uma banda de rock no palco. A música ao vivo se mistura a uma situação, mas nada jamais lembra as ilusões de um musical da Broadway ou do filme “La La Land”.
O anti-ilusionismo do Latão tem bases no teatro de Bertolt Brecht — chamado de épico e que está no título da peça. Quem entra na sala do espetáculo é convidado a imaginar o que está no palco. Não há o truque de reconstituir cenários com exatidão. Os atores e as atrizes se dirigem à plateia para convidá-la a pensar. A cena foge do padrão ficcional do “como se” fosse uma situação da realidade (que já é elaboração humana). A imaginação, em “A Banda Épica na Noite das Gerais”, está em conectar o passado e o presente.
Tampouco se deve pensar numa narrativa histórica, coincidentemente no momento em que se instaurou o fenômeno cultural e político “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles. A peça do Latão se passa em 1972, no auge do delírio desenvolvimentista (este espectro que jamais abandona o país). Uma banda de rock chamada Épica viaja pelo interior do Brasil, e seu ônibus quebra numa estrada na região do Rio Doce, em Minas Gerais. A turma que está na vanguarda da cultura brasileira da época é levada a encarar o Brasil.
O que acontece quando jovens pensantes do Brasil urbano dão de cara com a “realidade” do país profundo, tanto em 1972 quanto na atualidade? A alma brasileira nos grotões, nas profundezas, é uma das construções ideológicas mais consistentes e assusta quem observa as mutações brasileiras. A reação mais comum é de horror. Não há almas boazinhas à espera dos revolucionários de cada época. Em “A Banda Épica na Noite das Gerais”, o encontro é a desconexão de mundos.
A banda de rock espera pelo socorro de alguém que conserte o motor do ônibus. Esse socorro vai se materializar na figura de um soldado raso, um homem pobre que serve o Exército na região. Paira no ar a sensação de que os músicos da banda serão executados em algum momento. É o tema recorrente da “espera” no teatro, que permeia a peça. Esperar tem a ver com expectativa: o que virá a seguir? Mas nada acontece, e as coisas são adiadas. O Brasil vive justamente a contínua sensação de que algo vai ocorrer.
Quem dá os mínimos sinais de solidariedade aos músicos da banda de rock é a jovem Alana, que leva um dos rapazes do ônibus para o bar de sua madrinha. O boteco é um misto de tudo na cidadezinha mineira — também um lugar de espera infinita. O rapaz vai se revelar um militante em fuga da perseguição dos militares da ditadura na cidade grande. A ajuda também vem de Dora, uma caminhoneira que é mãe de Alana e volta de tempos em tempos para aquele fim de mundo em Minas Gerais.
Aos poucos, constrói-se uma cena complexa, em que poemas de Carlos Drummond de Andrade e letras de canções de Milton Nascimento entram na boca dos personagens. A trilha sonora, composta especialmente para a peça, é muito sofisticada. Há uma atualização de sons, além de menções às obras do Clube da Esquina dos anos 1970. A religiosidade mineira das pequenas cidades vai mostrando que as relações sociais, culturais e políticas montam um “claro enigma” bem brasileiro.
E esse enigma se torna sombrio com a entrada em cena do fazendeiro da região. Ele tem relações afetivas com Alana e Dora. Um passado estranho e melancólico surge na cena. Nem precisa ser muito clarividente para notar que a violência vai explodir na história. Essa violência tem a ver com as intervenções da empresa Vale do Rio Doce na região, nos anos 1970, e com as relações com as populações indígenas. Está montado o teatro bem à brasileira das ilusões do progresso e da desconexão entre artistas e o povo.
O povo aparece nas figuras do soldado raso e das três mulheres da cidadezinha (Dora, Alana e sua madrinha, dona do bar). O trio feminino está enredado num ajuste de contas com o fazendeiro e toma contato com a modernidade da banda de rock que, por sua vez, não sabe como sair dali. O moderno está no personagem do soldado, pronto a fazer o trabalho sujo para os fazendeiros da região e para a mineradora. Assim, a trama sugere um ambiente de terra em transe, mas é apenas a máquina Brasil funcionando.
A cantora da banda encerra a peça com a fala de que o Brasil é um mal-entendido. Isso significa que haveria uma ideia de país “bem entendido”, diferente daquele microcosmo mineiro de 1972. Mas haveria mesmo? Esse é um ponto intrigante da próxima nação brasileira que se constitui hoje. A verdade das coisas e do mundo não está mais em modernas guitarras elétricas, mas sim em canções tradicionais eletrificadas da música sertaneja. O que ainda pouco se entende, de fato, é o enigma do fazendeiro.
As peças do Latão, reunidas em livros em diferentes momentos de sua trajetória, formam um painel da história contemporânea do Brasil. Há articulação do teatro épico com uma investigação sobre a modernização do país. Desde “Ensaio para Danton” e “O Nome do Sujeito” até montagens recentes “O Pão e a Pedra” e “Lugar Nenhum”, a companhia explora impasses da política brasileira, ora reconstruindo momentos da organização operária, ora refletindo sobre a crise da intelectualidade e da arte engajada.