Há objetos que, ao caírem em desuso, não desaparecem: transformam-se em cápsulas de sensações que só o tempo sabe decantar. As fitas cassete são um exemplo quase mítico dessa persistência afetiva. Seus chiados e interrupções não eram falhas, mas pausas dramáticas em narrativas sentimentais gravadas à margem do cotidiano. Para quem viveu a juventude quando rebobinar era um gesto automático e sincero, nada substitui o ritual de ouvir, em looping imperfeito, confissões embaladas por refrões desajeitados e melodias agora datadas. Por trás de cada fita estava o desejo de manter viva alguma lembrança, de eternizar em fita magnética aquilo que a memória não queria confiar ao esquecimento. E, quando a fita enroscava, vinha junto uma frustração quase metafísica: o colapso do encanto, a falência do artifício.
Nesse universo onde a melodia guardava mais que acordes, Alex Fletcher é uma figura que parece ter sido esquecida pelo presente, mas cuidadosamente embalsamada pelo passado. Ex-integrante de uma boy band que sintetizava o pop comercial com acenos nostálgicos aos Beatles, Alex não encarna um has-been decadente, mas um sobrevivente afetivo de um tempo que não existe mais. Ele não se ressente da obsolescência — a explora. Suas aparições em festas de condomínio e feiras agrícolas são menos atos de resistência do que performances de uma vaidade indulgente. É o tipo de celebridade que gira em torno do próprio nome como um satélite desligado do planeta fama.
O contraponto surge com Sophie Fisher, não como crítica à nostalgia, mas como antídoto ao vício dela. Sophie não carrega os delírios da adolescente que colava pôsteres na parede — suas referências orbitam uma esfera mais literária, menos radiofônica, e por isso mesmo não se impressiona com o brilho residual de um popstar fora do eixo. A combinação entre os dois é inusitada e eficaz: enquanto Alex se ancora em memórias fossilizadas, Sophie representa o impulso espontâneo que revitaliza, por acidente, o que parecia morto. Mark Lawrence compreende esse embate entre passado e presente como mais que um contraste cômico — transforma-o num campo fértil para uma delicada dissecação do que significa amar sem se proteger no cinismo.
O filme se instala nesse terreno híbrido onde a canção romântica é tratada como hipótese de redenção. A primeira aparição de Alex já satiriza com elegância o anacronismo do personagem, num videoclipe ridiculamente encantador que destila referências visuais da MTV dos anos 1980. Ele dança como se o tempo não tivesse passado, num exercício involuntário de autoironia. Ainda que more num apartamento sofisticado, não há sinais de ambição: o conforto não é sinal de vitória, mas de acomodação. E é exatamente essa estagnação afetiva que será posta à prova quando surge a inesperada proposta de colaborar com Cora Corman, uma estrela pop em crise criativa, que vê em Alex um nome capaz de emprestar à sua imagem um verniz de autenticidade que o presente não oferece.
A breve interação entre Alex e Cora já insinua a tensão entre o produto e o processo criativo. A busca por uma canção que seja sucesso não tem nada de espontânea: é estratégia. E é nesse vácuo entre sinceridade e performance que o roteiro de Lawrence injeta uma ironia fina. O romantismo do filme não é cego: ele reconhece os limites do encantamento. Ao mesmo tempo em que constrói uma fantasia amorosa com sabor clássico, desmonta suas engrenagens, revelando as concessões, os ruídos, os silêncios incômodos. O reencontro com o desejo passa por Sophie, mas também por algo mais sutil: a redescoberta de uma voz que Alex já não sabia se tinha.
Sophie é o ponto de inflexão. Ao assumir, quase por acidente, o papel de letrista improvisada, ela insere na equação algo que o protagonista jamais teve: verdade. Enquanto ele domina a forma, ela carrega o conteúdo — e é nesse atrito que a música se escreve. A leveza com que as palavras fluem da personagem de Drew Barrymore não disfarça a dor latente de uma história mal resolvida: um trauma encoberto por silêncios, mas que irrompe num detalhe do roteiro que poderia ser facilmente desperdiçado. A referência ao ex-professor Sloan Cates, que explorou sua história para construir uma carreira literária, relança o filme num território de fricções morais. O ressentimento, longe de ser um elemento lateral, ilumina a complexidade emocional de Sophie e subverte o tom da narrativa. A comédia não se dissolve — ela amadurece.
Essa subtrama, infelizmente subexplorada, oferece um contraste riquíssimo que o filme parece recear desenvolver. Há ali uma densidade emocional e ética que transborda a leveza ensaiada do roteiro. Drew Barrymore, ciente disso, modela sua personagem com precisão impressionante: seus gestos nunca são calculados, mas carregam um tipo de contenção que reforça o que o texto apenas insinua. Há algo em Sophie que jamais se entrega por inteiro — e é justamente essa resistência que torna seu romance com Alex menos previsível do que o gênero costuma permitir. Ao lado dela, a personagem de Kristen Johnston — a irmã Rhonda — assume uma função coadjuvante que, embora cômica, amplia o espectro de relações femininas e acrescenta camadas à trajetória de Sophie, mesmo sem o tempo de tela que mereceria.
Ao fim, o filme não tenta reinventar a roda — mas parece saber que ela já não gira como antes. Lawrence articula uma narrativa que se equilibra entre a sátira e a ternura, entre o pastiche pop e o desejo sincero de se conectar. Não é o brilho da fama nem o reencontro amoroso que o move, mas a constatação de que, às vezes, para seguir em frente, é preciso escrever uma nova letra para a mesma melodia. O que diferencia os que apenas tocam dos que realmente emocionam não é a afinação, mas a coragem de assumir as próprias falhas sem autotune.
★★★★★★★★★★