Denzel Washington perdeu 20kg e dispensou dublê neste filme ignorado que combina ação insana com filosofia pura Divulgação / Sony Pictures

Denzel Washington perdeu 20kg e dispensou dublê neste filme ignorado que combina ação insana com filosofia pura

Num futuro onde a Terra foi devastada por guerras religiosas e a civilização se dissolveu sob o peso da própria arrogância, “O Livro de Eli” constrói uma narrativa seca e implacável sobre fé, poder e resistência. A obra dirigida pelos irmãos Albert e Allen Hughes mergulha o espectador em uma América esvaziada, onde a poeira encobre não só as cidades destruídas, mas também os vestígios de humanidade que restaram. É nesse cenário árido — visual e moralmente — que Eli, interpretado por um Denzel Washington meticulosamente contido, atravessa paisagens desoladas carregando aquele que talvez seja o último exemplar da Bíblia. Não apenas um livro: uma arma simbólica, capaz de reconstruir ou destruir o que sobrou do mundo. A jornada do protagonista é tanto física quanto espiritual, e é exatamente na tensão entre esses dois polos que o filme se fortalece, mesmo quando abraça o absurdo com desavergonhada intensidade.

A caminhada de Eli em direção ao oeste, durante trinta anos, é simultaneamente literal e metafórica. Ele não sabe com precisão se está indo para o lugar certo — e nem precisa. “Fé”, responde ele, quando questionado sobre sua direção. A resposta, aparentemente simples, ecoa com profundidade crescente à medida que o enredo avança. O que poderia ser apenas mais um filme pós-apocalíptico cheio de estereótipos visuais — motociclistas bárbaros, desertos intermináveis, vilarejos controlados por tiranos — se transforma, pela direção estilizada e pelo roteiro de Gary Whitta, em uma parábola sobre a persistência do sentido diante do colapso. A estética entre o western distópico e o “Mad Max” evoca familiaridade, mas também ironia: as roupas de couro, os casacos pesados, a falta de água, a linguagem crua — tudo isso reforça uma ambientação onde a fé, deslocada e desacreditada, ainda encontra espaço para existir. E resistir.

Eli não é um profeta. Pelo menos não o tipo que esperamos ver. Sua figura soturna, de poucas palavras e gestos calculados, mais lembra um guerreiro ferido do que um guia espiritual. Mas o paradoxo é exatamente esse: ele é o portador da fé num mundo que já não crê em nada — nem em si mesmo. Seu livro, escondido, protegido, lido todas as noites em silêncio, é simultaneamente sua bússola e sua cruz. Do outro lado dessa alegoria está Carnegie (Gary Oldman), um senhor de uma cidade improvisada no meio do deserto, que deseja o livro não por sua mensagem, mas pelo poder que ela exerce sobre as massas. Ele compreende que palavras moldam consciências, e consciências moldam domínios. Na figura de Carnegie, o filme articula uma crítica feroz ao uso da religião como ferramenta de dominação — o mesmo discurso que motivou a queima de todas as bíblias após a guerra que devastou o planeta.

É nesse embate entre o fanático e o crente silencioso, entre o manipulador e o guardião de um legado, que “O Livro de Eli” encontra seu eixo dramático mais poderoso. Solara (Mila Kunis), jovem prostituta criada no ambiente opressivo de Carnegie e Claudia (Jennifer Beals), sua mãe subjugada, torna-se a ponte entre esses dois mundos. Seu desejo de fuga e a escolha por seguir Eli surgem não de uma crença imediata, mas de uma intuição de que o caminho da fé, ainda que turvo, é menos degradante do que a certeza do poder absoluto. Em um universo onde objetos triviais se tornam moeda e água vale mais que ouro, a Bíblia ressurge como símbolo de tudo o que foi perdido — e, paradoxalmente, como ameaça de uma nova queda, caso caia nas mãos erradas. A fé, portanto, não é retratada como redentora em si, mas como força bruta que pode curar ou corromper, dependendo de quem a empunha.

Tecnicamente, o filme é um espetáculo de secura. A fotografia de Don Burgess aposta em tons terrosos puxando para o cinza, sugerindo um mundo sem cor, sem vida e sem esperança. A trilha sonora é discreta, quase ausente, abrindo espaço para o silêncio — que, em “O Livro de Eli”, diz mais do que qualquer diálogo. A performance de Washington, ainda mais impressionante ao sabermos que não usou dublês nas cenas de luta e que treinou com o próprio Dan Inosanto, discípulo de Bruce Lee, é marcada por uma contenção que beira o estoicismo. Ao fim da projeção, quando se revela o segredo de Eli — aquele detalhe que reconfigura tudo o que vimos até ali —, o filme entrega não uma reviravolta barata, mas uma chave simbólica: a fé não depende da visão literal, mas da entrega absoluta ao que não se pode ver.

A crítica pode apontar falhas — e elas existem. O roteiro por vezes escorrega no didatismo, o terceiro ato recorre a clichês do cinema de ação, e há momentos em que o simbolismo pesa mais do que deveria. Mas há também uma beleza rara em sua ousadia. O final é, sim, implausível — “magnificamente, descaradamente, implausível”, como diriam os bons críticos — e é justamente por isso que funciona. Porque se há algo que “O Livro de Eli” demonstra com força, é que há valor em tentar dizer o indizível. Mesmo que o mundo esteja desmoronando, mesmo que ninguém esteja mais ouvindo. Ou, quem sabe, justamente por isso.

Filme: O Livro de Eli
Diretor: Albert e Allen Hughes
Ano: 2010
Gênero: Ação/Aventura/Drama/Épico
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★