Precisa de um respiro? Essa comédia romântica no Prime Video pode salvar sua semana Divulgação / Amazon Prime Video

Precisa de um respiro? Essa comédia romântica no Prime Video pode salvar sua semana

Num tempo em que as comédias românticas parecem ter abdicado da espontaneidade em nome da fórmula e da esterilidade emocional, certas obras escapam por vias menos previsíveis. A direção de Analeine Cal y Mayor envereda por um terreno inusitado: transforma o desgaste do gênero numa ferramenta de renovação crítica. O longa se impõe não por ambição estética ou ousadia formal, mas por uma autoconsciência rara — assume o lugar de entretenimento escapista, mas se utiliza disso para tensionar estruturas culturais e afetivas que raramente são expostas com tanto frescor. O que poderia ser apenas uma comédia esquecível se converte, aqui, num espelho distorcido e provocador de uma indústria que ainda resiste ao pluralismo narrativo.

A premissa parte da frustração de Henry Copper, autor cujo fracasso editorial na Inglaterra ganha contornos surreais ao descobrir que seu romance insosso tornou-se best-seller no México. A ironia está no detalhe: a tradutora, Maria Rodriguez, reescreveu o livro de forma tão libertadora quanto indecente — aos olhos dele. O conflito entre o pudor britânico e a reinvenção latina abre margem para algo maior do que o mero contraste cultural: o filme propõe uma investigação sobre autoria, controle criativo e a violência simbólica dos discursos literários que se pretendem superiores. A linguagem contida de Henry não representa apenas um estilo, mas a negação sistemática de tudo que escapa à norma: desejo, desobediência, desordem. Maria, ao reescrever, reconfigura o próprio papel da mulher na narrativa — de objeto a criadora.

Essa colisão entre o apagamento e a exuberância reverbera no ritmo da trama, que evita o impulso apressado de unir o casal logo de início. A construção da intimidade entre Henry e Maria é paciente, desconfortável até, sustentada por embates e silêncios que dizem mais do que qualquer frase espirituosa. Aqui, o riso é incômodo antes de ser leve; a comédia funciona não como válvula de escape, mas como provocação constante. O roteiro, embora escorregue em algumas soluções fáceis, tem o mérito de tratar o romance como percurso de desconstrução identitária, e não como mero destino afetivo. Henry precisa ser desestabilizado para existir de forma autêntica, e Maria, por sua vez, só se permite afetar porque já domina a narrativa que escreve — e vive.

A viagem pelo interior mexicano é mais que uma sequência de eventos cômicos; é um desmonte meticuloso de estereótipos. A diretora evita o exotismo fácil, preferindo insinuações visuais que ressaltam a vitalidade do país sem reduzi-lo a cenário decorativo. A estética solar não é um adorno, mas uma contraposição ao cinza emocional de Henry. Ainda que algumas figuras secundárias se diluam em caricaturas — como o ex de Maria ou a editora inglesa —, o núcleo central é forte o suficiente para sustentar os tropeços. Sam Claflin administra com habilidade a contenção quase patética de seu personagem, enquanto Verónica Echegui confere densidade e carisma à figura da mulher que sabe demais, mas que ainda assim precisa ser ouvida por alguém disposto a aprender a escutá-la.

As tensões de classe, gênero e raça atravessam o filme sem que ele precise gritar por atenção. O mérito maior está em fazer do melodrama um campo legítimo de crítica. Ao transformar uma novela popular num catalisador de debates sobre autoria e representação, a narrativa aponta para uma inversão de hierarquias culturais. Não se trata apenas de parodiar o mundo editorial, mas de revelar suas fragilidades estruturais. O que incomoda Henry não é a distorção de sua obra, mas o fato de que a versão distorcida finalmente encontrou leitores — e, pior, leitores entusiasmados. Essa desconstrução do ego criativo branco, masculino e europeu é conduzida com graça, mas não sem contundência.

Se os artifícios narrativos por vezes tropeçam em conveniências ou soluções já vistas, o saldo ainda é surpreendentemente vigoroso. Em um mercado saturado por romances que parecem produzidos em série, o filme reivindica a importância do desejo como motor narrativo — não o desejo domesticado e previsível dos scripts, mas aquele que desestabiliza e redesenha a realidade. O erotismo aqui não é fetiche, mas linguagem de insurgência, devolvendo à escrita uma função primordial: a de perturbar o conforto alheio. Há, portanto, uma crítica embutida ao que se considera literatura “séria”, e uma defesa nada tímida do poder transformador das histórias que fazem corar.

É possível, então, que essa comédia aparentemente modesta seja justamente o que falta ao gênero: não uma tentativa de ressuscitar fórmulas antigas, mas uma afirmação de que o romance ainda tem algo a dizer — desde que alguém tenha coragem de reescrevê-lo com mais desejo, mais ruído e menos reverência. O filme nos oferece isso: a possibilidade de rir e pensar ao mesmo tempo, sem a obrigação de escolher entre prazer e crítica. E talvez, nesse gesto simples e radical, esteja sua contribuição mais valiosa.

Filme: O Livro do Amor
Diretor: Analeine Cal y Mayor
Ano: 2022
Gênero: Comédia/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★