Num tempo em que as comédias românticas parecem ter abdicado da espontaneidade em nome da fórmula e da esterilidade emocional, certas obras escapam por vias menos previsíveis. A direção de Analeine Cal y Mayor envereda por um terreno inusitado: transforma o desgaste do gênero numa ferramenta de renovação crítica. O longa se impõe não por ambição estética ou ousadia formal, mas por uma autoconsciência rara — assume o lugar de entretenimento escapista, mas se utiliza disso para tensionar estruturas culturais e afetivas que raramente são expostas com tanto frescor. O que poderia ser apenas uma comédia esquecível se converte, aqui, num espelho distorcido e provocador de uma indústria que ainda resiste ao pluralismo narrativo.
A premissa parte da frustração de Henry Copper, autor cujo fracasso editorial na Inglaterra ganha contornos surreais ao descobrir que seu romance insosso tornou-se best-seller no México. A ironia está no detalhe: a tradutora, Maria Rodriguez, reescreveu o livro de forma tão libertadora quanto indecente — aos olhos dele. O conflito entre o pudor britânico e a reinvenção latina abre margem para algo maior do que o mero contraste cultural: o filme propõe uma investigação sobre autoria, controle criativo e a violência simbólica dos discursos literários que se pretendem superiores. A linguagem contida de Henry não representa apenas um estilo, mas a negação sistemática de tudo que escapa à norma: desejo, desobediência, desordem. Maria, ao reescrever, reconfigura o próprio papel da mulher na narrativa — de objeto a criadora.
Essa colisão entre o apagamento e a exuberância reverbera no ritmo da trama, que evita o impulso apressado de unir o casal logo de início. A construção da intimidade entre Henry e Maria é paciente, desconfortável até, sustentada por embates e silêncios que dizem mais do que qualquer frase espirituosa. Aqui, o riso é incômodo antes de ser leve; a comédia funciona não como válvula de escape, mas como provocação constante. O roteiro, embora escorregue em algumas soluções fáceis, tem o mérito de tratar o romance como percurso de desconstrução identitária, e não como mero destino afetivo. Henry precisa ser desestabilizado para existir de forma autêntica, e Maria, por sua vez, só se permite afetar porque já domina a narrativa que escreve — e vive.
A viagem pelo interior mexicano é mais que uma sequência de eventos cômicos; é um desmonte meticuloso de estereótipos. A diretora evita o exotismo fácil, preferindo insinuações visuais que ressaltam a vitalidade do país sem reduzi-lo a cenário decorativo. A estética solar não é um adorno, mas uma contraposição ao cinza emocional de Henry. Ainda que algumas figuras secundárias se diluam em caricaturas — como o ex de Maria ou a editora inglesa —, o núcleo central é forte o suficiente para sustentar os tropeços. Sam Claflin administra com habilidade a contenção quase patética de seu personagem, enquanto Verónica Echegui confere densidade e carisma à figura da mulher que sabe demais, mas que ainda assim precisa ser ouvida por alguém disposto a aprender a escutá-la.
As tensões de classe, gênero e raça atravessam o filme sem que ele precise gritar por atenção. O mérito maior está em fazer do melodrama um campo legítimo de crítica. Ao transformar uma novela popular num catalisador de debates sobre autoria e representação, a narrativa aponta para uma inversão de hierarquias culturais. Não se trata apenas de parodiar o mundo editorial, mas de revelar suas fragilidades estruturais. O que incomoda Henry não é a distorção de sua obra, mas o fato de que a versão distorcida finalmente encontrou leitores — e, pior, leitores entusiasmados. Essa desconstrução do ego criativo branco, masculino e europeu é conduzida com graça, mas não sem contundência.
Se os artifícios narrativos por vezes tropeçam em conveniências ou soluções já vistas, o saldo ainda é surpreendentemente vigoroso. Em um mercado saturado por romances que parecem produzidos em série, o filme reivindica a importância do desejo como motor narrativo — não o desejo domesticado e previsível dos scripts, mas aquele que desestabiliza e redesenha a realidade. O erotismo aqui não é fetiche, mas linguagem de insurgência, devolvendo à escrita uma função primordial: a de perturbar o conforto alheio. Há, portanto, uma crítica embutida ao que se considera literatura “séria”, e uma defesa nada tímida do poder transformador das histórias que fazem corar.
É possível, então, que essa comédia aparentemente modesta seja justamente o que falta ao gênero: não uma tentativa de ressuscitar fórmulas antigas, mas uma afirmação de que o romance ainda tem algo a dizer — desde que alguém tenha coragem de reescrevê-lo com mais desejo, mais ruído e menos reverência. O filme nos oferece isso: a possibilidade de rir e pensar ao mesmo tempo, sem a obrigação de escolher entre prazer e crítica. E talvez, nesse gesto simples e radical, esteja sua contribuição mais valiosa.
★★★★★★★★★★