Comédia romântica charmosa e elegante de Warren Beatty parece uma máquina do tempo para os anos de ouro do cinema, na Netflix Divulgação / 20th Century Fox

Comédia romântica charmosa e elegante de Warren Beatty parece uma máquina do tempo para os anos de ouro do cinema, na Netflix

Warren Beatty atravessou seis décadas de cinema sem se limitar a uma única função: ator, diretor, produtor e roteirista, ele sempre moldou sua trajetória de acordo com suas próprias regras. Seu retorno às telas após um hiato de 18 anos com “Regras Não Se Aplicam” gerou expectativas e questionamentos. A obra, que se disfarça de comédia romântica ambientada na Hollywood dos anos 1950, está longe de ser apenas um romance nostálgico. Na interseção entre ingenuidade e pragmatismo, Beatty propõe um estudo sobre ilusões e realidades que transcende a história de seus protagonistas, Marla Mabrey (Lily Collins) e Frank Forbes (Alden Ehrenreich).

Em sua filmografia, Beatty nunca se acomodou ao convencional. “Reds” (1981) confrontava a ideologia da Era Reagan; “Dick Tracy” (1990) reinventava um clássico pulp em um momento de incerteza política; “Política é Destino” (1998) expunha as incoerências do liberalismo norte-americano. Em “Regras Não Se Aplicam”, ele opta por um caminho distinto: em vez de subverter um gênero, ele o abraça com um olhar irônico, evidenciando sua própria artificialidade. A previsibilidade torna-se ferramenta, não limitação. O filme evoca uma Hollywood que já não existe, mas não como saudosismo, e sim como provocação sobre a própria estrutura de poder e mitificação que a sustentou.

No centro do enredo, Howard Hughes não chega como um personagem, mas como uma força gravitacional que desestabiliza e fascina. Beatty interpreta Hughes não como um homem, mas como um símbolo da paranoia, da excentricidade e da obsessão que definiram sua lenda. Diferente da abordagem biográfica de “O Aviador”, de Scorsese, que procurava uma análise psicológica mais aprofundada, “Regras Não Se Aplicam” opta por uma leitura quase mitológica: Hughes é um catalisador de eventos, uma entidade em torno da qual outros orbitam. Seu comportamento errático, ao mesmo tempo cômico e trágico, impõe um jogo de expectativas que redefine o destino de Marla e Frank.

Nesse embate entre juventude e poder, Lily Collins e Alden Ehrenreich assumem a responsabilidade de equilibrar ingenuidade e determinação. Collins se sobressai ao interpretar uma jovem aspirante a atriz que, em vez de ser moldada pelo sistema, o desafia, especialmente em uma cena emblemática em que canta a canção-título. Ehrenreich, por sua vez, traz camadas ao seu personagem, evitando que Frank seja apenas um romântico desiludido. Seu carisma ecoa o magnetismo dos astros do cinema clássico, e seu timing cômico reforça o tom tragicômico do longa.

Entretanto, se “Regras Não Se Aplicam” demonstra um controle estilístico impressionante, sua estrutura por vezes reflete a fragmentação de sua produção. O fato de haver quatro montadores nos créditos sugere um processo de edição conturbado, o que se reflete em oscilações rítmicas. Algumas transições entre cenas parecem abruptas, o que, ocasionalmente, prejudica a fluidez da narrativa e dilui o impacto emocional de certos momentos.

Ainda assim, a singularidade do filme está na maneira como Beatty brinca com convenções de gênro sem necessariamente se prender a elas. O humor, sofisticado e pontuado por absurdos, dialoga com as comédias clássicas de Hollywood, mas sempre com um subtexto melancólico. A presença de um elenco de apoio repleto de rostos conhecidos, como Annette Bening, Alec Baldwin, Oliver Platt e Matthew Broderick, contribui para essa sensação de que estamos assistindo a um requiem para um tipo de cinema que raramente encontra espaço no mercado contemporâneo.

Se este for, de fato, o último filme de Warren Beatty, ele se despede de maneira fiel às suas próprias convicções: recusando-se a ser categorizado de forma simplista. “Regras Não Se Aplicam” não busca reafirmar um legado, tampouco tenta se adaptar a uma nova era do cinema. Em vez disso, Beatty entrega uma obra que à primeira vista parece despretensiosa, mas que, sob sua aparente leveza, esconde uma reflexão sobre os limites entre mito e realidade, convenção e subversão. Um filme que, como seu protagonista, desafia definições fáceis e insiste em existir sob suas próprias regras.

Filme: Regras Não Se Aplicam
Diretor: Warren Beatty
Ano: 2016
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★