O filme mais assistido do planeta atualmente é influenciado por uma autora que previu o futuro décadas atrás: Octavia Butler — na Netflix Divulgação / Paramount Pictures

O filme mais assistido do planeta atualmente é influenciado por uma autora que previu o futuro décadas atrás: Octavia Butler — na Netflix

O silêncio, aqui, não atua como ausência, mas como amplificador daquilo que normalmente se esconde sob o ruído constante da vida cotidiana. Não é uma metáfora, tampouco um recurso estilístico: é um ambiente concreto, hostil, que exige do espectador não apenas atenção, mas entrega. O que se desenha diante de nós não é a origem de uma catástrofe, mas a anatomia da desorientação. E o que assusta não são os monstros — é a perda de qualquer lógica que organize o medo. À medida que o colapso se insinua, somos privados não de respostas, mas da própria estrutura que costumava sustentá-las.

Essa recusa em explicar torna-se o gesto mais radical da narrativa. O filme não se ocupa em decifrar a ameaça, pois entende que a verdadeira devastação não está fora, mas na falência das categorias com que tentamos interpretar o mundo. A tensão não deriva da presença do inimigo, mas da instabilidade que ele introduz em tudo o que julgávamos sólido. Ao optar por não revelar, o enredo estreita os laços entre a experiência dos personagens e a do público, nivelando ambos diante da mesma vertigem. O terror, então, desloca-se do evento extraordinário para o cotidiano desfigurado, para a constatação de que viver já não se desenrola segundo regras inteligíveis.

Há quem procure, em histórias apocalípticas, uma engenharia reversa da queda, uma espécie de cronologia da destruição. Mas o que se oferece aqui é o avesso disso: não o mapa da tragédia, mas o vazio que ela deixa. É nesse vazio que pulsa a verdadeira trama — não a dos alienígenas, mas a dos humanos tentando não se desfazer. Cada escolha, cada gesto, cada olhar, é um esforço para manter alguma noção de pertencimento num cenário que dissolveu o pertencimento por completo. O interesse não está no espetáculo do fim, mas no que ainda insiste em permanecer vivo, mesmo quando já parece tarde demais para qualquer permanência.

Esse olhar se concretiza nas relações. Sem dramatizações ou sentimentalismos, os vínculos se constroem como abrigo precário — não porque salvam, mas porque sustentam o pouco que resta. O encontro entre duas figuras partidas, uma pelo diagnóstico de uma doença terminal, outra pela exaustão emocional, desenha uma ética da sobrevivência afetiva. Não se trata de encontrar sentido, mas de suportar juntos o absurdo. A grandeza dessas interações está justamente na recusa de qualquer narrativa de superação. O que há é a persistência — e ela se basta.

O símbolo mais pungente dessa persistência é, paradoxalmente, um gesto banal: buscar uma fatia de pizza em meio ao apocalipse. Há nisso algo de insubordinação emocional, um ato mínimo de insurreição contra o esvaziamento do real. O alimento, nesse caso, não é nutrição, mas memória. É a tentativa de tocar, ainda que por segundos, uma realidade que já colapsou. A pizza não é comida: é uma âncora. Um lembrete de que ainda é possível desejar, mesmo quando o desejo já não faz sentido.

Essa recusa a entregar um clímax confortante transforma a experiência do filme em algo próximo de uma ferida aberta. Nada se resolve, porque nada precisa se resolver. A devastação não vem da morte, mas da permanência — da vida que continua apesar de tudo. Ao articular o fim do mundo e o fim do corpo como manifestações de uma mesma falência, o filme sugere que o verdadeiro confronto não é com os monstros lá fora, mas com a dissolução silenciosa de tudo que nos fazia reconhecer quem somos.

Visualmente, essa proposta se traduz em contenção. Nada é exibido em excesso, porque nada precisa ser provado. A ameaça não se afirma pelo que se vê, mas pelo que não se pode mais ignorar. Cada plano é uma compressão do espaço vital, e o silêncio, mais que uma exigência do roteiro, torna-se a matéria-prima da encenação. Assistir ao filme é, de certo modo, ser tragado para dentro de um mecanismo de vigilância contínua — uma experiência sensorial que reconfigura o modo de olhar e ouvir.

O resultado é um confronto nu com o colapso da significação. O que o espectador encontra não é uma explicação, mas um espelho invertido, onde o reflexo não reconforta. Não há mais onde se apoiar. E talvez seja esse o ponto: não restam referências, mas sim perguntas que não se calam. Quando tudo se desintegra, o que ainda nos define? Quando os sentidos vacilam, o que ainda merece ser sentido?

Ao se negar a oferecer consolo, o filme alcança uma clareza incômoda: nem todo silêncio precisa ser rompido, nem toda história quer ser entendida. Algumas apenas nos acompanham — como um eco que se recusa a morrer. E, nessa recusa, revelam mais sobre nós do que qualquer resposta. Porque existem narrativas que não se explicam — apenas permanecem.

Filme: Um Lugar Silencioso: Dia Um
Diretor: Michael Sarnoski
Ano: 2024
Gênero: Drama/Ficção Científica/Terror
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★