Nem todo amanhecer nos devolve a vida. Há dias em que se percebe, sem qualquer aviso, a presença mórbida de algo que não é ausência, mas um peso sutil que se impõe — uma espécie de aviso mudo de que a matéria já não basta. O corpo, embora inteiro, começa a se mostrar vencido por um mal que não sangra, mas se insinua: uma apatia envenenada que infiltra o dia, transforma a respiração em esforço e devolve à realidade um gosto amargo de fim antecipado. Como se houvesse um cansaço que não fosse físico, um desgaste que nos arrastasse para um espaço em que o tempo perde a relevância.
É nesse território suspenso entre o hoje e o nunca mais que se inscreve a proposta do filme de Takahiro Miki, cuja base — retirada de um texto de Ao Morita publicado em uma plataforma de autores independentes — parece fazer questão de explicitar, já no título, a urgência do que será contado. O encontro entre duas pessoas marcadas por diagnósticos fatais poderia, à primeira vista, cair numa armadilha melodramática qualquer. Contudo, a maneira como a narrativa se ergue desvia desse risco: há ali não apenas uma tentativa de emocionar, mas a construção de um espaço onde o afeto, por efêmero que seja, consegue ocupar mais do que as ausências que o rodeiam.
É evidente que a lógica interna do enredo não resiste a uma análise cética. A improbabilidade de duas vidas tão limitadas pelo relógio se encontrarem num mesmo desfecho, e ainda assim desenvolverem uma relação tão plena, desafia a razão de quem exige precisão do realismo. Mas o filme opera em outro nível: sua força não reside na fidelidade factual, mas na potência simbólica de suas escolhas. E é nesse plano que o envolvimento dos atores se mostra essencial — o vínculo entre eles não apenas sustenta, mas também desloca a atenção do espectador, tornando crível aquilo que, sob outros intérpretes, talvez soasse apenas como alegoria frágil.
O amor, nesse contexto, não surge como solução, consolo ou qualquer promessa. É antes um tipo de teimosia: uma recusa silenciosa a deixar que o diagnóstico se torne tudo. A convivência entre Akihito e Haruna está sempre à beira do colapso, mas essa proximidade com o fim não reduz a beleza do que compartilham — pelo contrário, parece intensificá-la. Não há aqui nenhuma tentativa de negar o destino. O que há é um enfrentamento sem histeria, um gesto de afirmação que prefere o instante à esperança e que, por isso mesmo, acaba tocando numa verdade que escapa à maioria das narrativas sobre perdas.
A direção de Miki, ao apostar na contenção, evita qualquer explosão emocional gratuita. Ele oferece uma história em que tudo é construído na entrelinha, e onde a conexão entre os personagens se estabelece mais pelo que não é dito do que pelos diálogos. É na escolha de silêncios, nos olhares longos, nos espaços compartilhados com pudor que a poesia se insinua. A tragédia, aqui, não precisa de grandes declarações: ela se adivinha no modo como um copo é segurado, no tempo que se leva para fechar os olhos, na hesitação em tocar.
A cena em que Akihito e Haruna se encontram pela primeira vez, no alto de um hospital, é menos revelação do que prenúncio. O que se inicia ali não é exatamente uma história de amor, mas uma aproximação entre duas solidões que se reconhecem. E se o texto da protagonista revela, logo de início, a raridade da enfermidade que carrega, é apenas mais um modo de pontuar o que já se entende pelo contexto: ali está alguém que, apesar da juventude, convive com a certeza de que o tempo já se esvai.
O filme sabe que não precisa correr. Ao contrário: investe na lentidão como linguagem. A relação entre os dois vai se tecendo aos poucos, sempre sob a sombra do não-dito. Quando finalmente há entrega, ela não se realiza como clímax, mas como uma espécie de aceitação — de que o amor não depende da longevidade para ser inteiro, nem da saúde para ser verdadeiro. O sentimento que se forma entre eles existe dentro dos limites impostos pela finitude, e talvez por isso mesmo ganhe uma potência tão rara: ele não se protege, não se ilude, não se projeta para o futuro.
Não se trata, portanto, de um conto com final agridoce, mas de um retrato honesto da delicadeza que pode existir mesmo nas situações mais devastadoras. E se, por instantes, o espectador sente algo que se assemelha à esperança, não é porque o desfecho aponta para a cura, mas porque os personagens, ao escolherem amar, encontram uma forma de resistência. “Até que as Cores Acabem” não promete salvação. O que oferece é algo ainda mais raro: a possibilidade de, mesmo à beira do fim, habitar um instante com tanta presença que o tempo, por mais curto que seja, deixa de ser um inimigo.
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