Esse filme argentino é como uma tarde tranquila depois da chuva. Dura 106 minutos — e está na Netflix Cleo Bouza / Netflix

Esse filme argentino é como uma tarde tranquila depois da chuva. Dura 106 minutos — e está na Netflix

É possível pintar o amor sem idealizá-lo? É possível retratar a neurodiversidade sem reduzi-la a arquétipos simplificados? Em “Goyo”, o cineasta argentino Marcos Carnevale aposta que sim — embora nem sempre escape da armadilha de querer ser delicado demais. Depois de ter abordado com ternura a autonomia de uma jovem com síndrome de Down em “Anita”, Carnevale retorna ao terreno da sensibilidade com a história de Gregório, um guia de museu refinado, talentoso, inteligente e também portador da Síndrome de Asperger. A fórmula parece familiar: o homem excêntrico, socialmente inapto, encontra a mulher prática e emocionalmente calejada — e dessa colisão improvável nasce a chance de algo transformador. No entanto, “Goyo” não se acomoda nas expectativas do gênero. Ao contrário, parece constantemente tentar desviar do previsível, ainda que por vezes tropece na tentativa de traduzir complexidades reais em ficções palatáveis.

Goyo (Nicolás Furtado) habita um universo estético e emocional que o distancia da média: mora com os irmãos em uma mansão burguesa, tem memória prodigiosa, conhecimento enciclopédico sobre arte e uma sensibilidade plástica evidente. No entanto, é socialmente travado, ansioso, e incapaz de decodificar os códigos implícitos do afeto. A chegada de Eva (Nancy Dupláa), segurança recém-contratada do museu, rompe essa bolha silenciosa. Ela é o oposto de tudo o que Goyo representa: mulher comum, mãe solteira, moradora de periferia, pragmática, marcada por um ex-marido violento e por uma rotina que exige força constante. Ele, protegido por uma irmã supercontroladora e ferido por uma mãe ausente, vive imerso em lógicas internas e rotinas controladas. O choque entre esses dois mundos gera atrito — mas, acima de tudo, cria movimento.

Esse movimento, no entanto, não acontece com os atropelos típicos das comédias românticas convencionais. Carnevale conduz a relação entre Goyo e Eva com uma mistura de estranheza e humanidade que remete à construção de personagens como Santiago, de “O Carteiro e o Poeta”, ou ao lirismo cotidiano de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”. A primeira vez que Goyo vê Eva, ela está do outro lado da rua, lutando contra um guarda-chuva quebrado e xingando o vento — cena que ele observa em câmera lenta, como se aquela mulher imperfeita, de carne e caos, fosse a centelha que faltava para acender algo dentro dele. E de fato é. A partir dali, Goyo volta a pintar — e pintar, para ele, é mais do que expressão: é sobrevivência.

Não é à toa que críticas e análises compararam Goyo a figuras como Van Gogh e Hemingway. Como os dois artistas, o protagonista de Carnevale é atravessado por um desconforto essencial, uma inadequação radical ao mundo. Van Gogh, em sua solidão delirante, transformou angústia em cor. Hemingway, em seu exílio cubano, produziu “O Velho e o Mar” apenas depois de ser desafiado por seu editor a abandonar a letargia e reencontrar o sentido. Goyo, da mesma forma, só reencontra sua vitalidade criativa — e, talvez, sua dignidade emocional — quando passa a canalizar sua dor e confusão em tela. O amor, nesse sentido, é apenas um gatilho. O verdadeiro arco de transformação é interno: Goyo não quer apenas amar; ele precisa se aceitar como alguém que sente demais e comunica de menos.

Mas se Eva é o impulso que devolve cor à vida de Goyo, ela também é uma das grandes virtudes do roteiro. Diferente do estereótipo da “manic pixie dream girl” — aquela mulher idealizada cuja única função é consertar o homem quebrado —, Eva é construída com densidade, limites e falhas. Ela não suaviza a história com encantamento artificial. Ao contrário: sua presença traz conflito, constrangimento, mal-entendidos. Ela teme Goyo na primeira vez que o vê no metrô, acha que está sendo seguida, mostra-lhe o dedo do meio. Eva não é encantadora por ser fofa, mas por ser real. E é justamente por isso que o afeto entre eles ganha densidade. Não é o amor que salva Goyo — é o atrito com a alteridade que o impulsiona.

Ainda assim, “Goyo” hesita em aprofundar sua promessa narrativa até o fim. O talento artístico do protagonista, que deveria ser tratado como força vital e não apenas detalhe biográfico, fica em segundo plano quando o filme poderia — e talvez devesse — usá-lo como catalisador da epifania final. Carnevale acerta ao construir uma fábula emocionalmente honesta, mas falha ao não explicitar com mais coragem a dimensão trágica e redentora da criatividade como ferramenta de autorreconhecimento. O filme se constrói com delicadeza, mas em seu ato final recua onde poderia avançar, silencia onde poderia gritar — como se temesse que a intensidade pudesse espantar o espectador acostumado a soluções fáceis.

Ainda assim, é impossível ignorar a força que “Goyo” carrega quando decide não ser exemplar, mas apenas humano. É nesse espaço entre o que o filme ousa ser e o que recua que está sua beleza mais incômoda. Gregório não é um herói trágico nem um gênio incompreendido — é um homem tentando entender por que, mesmo com tudo o que tem, ainda se sente incompleto. E talvez o que lhe falte — como falta a todos nós — não seja alguém para amar, mas um lugar onde sua sensibilidade não precise ser explicada, apenas respeitada. É ali que o cinema de Carnevale brilha: quando abandona a lição de moral e deixa apenas a imagem — de um homem diante de uma tela em branco, tentando pintar, não o que vê, mas o que sente.

Filme: Goyo
Diretor: Marcos Carnevale
Ano: 2024
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★