Paul Thomas Anderson retorna à Los Angeles dos anos 1970 com um olhar que rejeita a nostalgia banal em favor de uma reconstrução vívida e cheia de nuances. “Licorice Pizza” não se prende às narrativas comuns e tampouco oferece uma trama tradicional com início, meio e fim delineados. Em vez disso, se constrói como um mosaico de episódios interligados por um fio tênue, mas irresistível: a trajetória de dois personagens em permanente oscilação entre a inocência juvenil e a complexidade do amadurecimento.
No meio dessa dinâmica está Gary, um adolescente dotado de uma confiança desproporcional à sua idade, e Alana, uma mulher na casa dos vinte anos que se vê suspensa entre a liberdade da juventude e as exigências de uma vida adulta que ainda não se consolidou. A relação entre os dois desafia classificações fáceis. Há momentos em que parecem cúmplices inseparáveis, parceiros em pequenos golpes e empreendimentos improvisados; em outros, a discrepância de idade e maturidade evidencia-se de maneira desconfortável. Anderson não impõe julgamentos explícitos, mas permite que o espectador navegue pelos contornos dessa proximidade singular, questionando o que torna uma relação legítima ou problemática.
Cooper Hoffman herda a presença magnética do pai, Philip Seymour Hoffman, mas sem qualquer resquício de imitação. Ele traz ao personagem uma energia contagiante, um misto de audácia e vulnerabilidade que torna Gary impossível de ignorar. Alana Haim, por sua vez, é uma revelação absoluta. Com uma atuação que equilibra insegurança e determinação, frustração e fascínio, ela encarna uma personagem que se debate entre o desejo de ser levada a sério e a tentação de permanecer na leveza do improviso. É na química entre os dois que mora o coração pulsante do filme: um vínculo que desafia expectativas e se sustenta na cumplicidade silenciosa, nos gestos hesitantes, nos olhares que carregam significados subentendidos.
Mas “Licorice Pizza” é mais do que uma história sobre dois indivíduos. É também um retrato de um tempo e de um espaço capturados com uma precisão desconcertante. Anderson já visitou essa Los Angeles antes, mas aqui ele a reconstrói de maneira quase tátil, fugindo de um glamour estilizado para capturar suas arestas mais cruas. A cidade se torna um organismo vivo, povoado por figuras extravagantes e imprevisíveis que cruzam o caminho dos protagonistas — algumas com impacto profundo, outras apenas como aparições fugazes que adicionam textura ao percurso errático de Gary e Alana. Participações de Sean Penn e Bradley Cooper, ainda que memoráveis, flertam com o excesso, e há momentos em que o filme parece se perder em sua própria divagação. Mas essa sensação de dispersão, longe de ser uma falha, reflete a própria natureza do período que retrata: um tempo de descobertas desencontradas, de caminhos que se bifurcam sem avisos, de impulsos que movem os personagens sem garantia de destino certo.
Por trás da leveza aparente, há também uma inquietação latente. O filme não ignora as dinâmicas de poder e gênero que atravessam a trajetória de Alana. Repetidamente, ela se vê diante de homens que a reduzem a projeções de desejo ou conveniência. A cada tentativa de afirmação, encontra novos obstáculos, seja na política, no trabalho ou nos relacionamentos. Alana vê em Gary uma autenticidade rara em um mundo marcado por interesses e dissimulação, mas essa conexão, por mais genuína que pareça, não deixa de carregar contradições.
Anderson evita resoluções definitivas. Seu interesse não está em definir os limites exatos dessa relação ou oferecer uma narrativa linear. “Licorice Pizza” é uma experiência fluida, uma sucessão de encontros e desencontros que capturam com exatidão o estado de incerteza que define tanto a juventude quanto a Los Angeles dos anos 70. Para alguns, a estrutura solta e episódica pode parecer frustrante. Para outros, é precisamente essa liberdade narrativa que torna o filme um retrato tão fiel da efervescência emocional e social que busca capturar.
★★★★★★★★★★
