Andar pelas ruas repletas de oralidade do “Caldeirão da Velha Chica” é experienciar a chegada dos alquimistas. Na década de setenta (até hoje), Jorge Ben encantou e cantou a todos que os alquimistas chegariam. E que eles são discretos e silenciosos, e moram bem longe dos homens. Alexandre Staut escolheu a hora e o tempo do seu precioso trabalho. Foi paciente, assíduo e perseverante. Seguiu as regras herméticas desde a trituração: a fixação e a coagulação. E, tudo isso, cortando as palavras em uma tábua de esmeralda. Tarefa que só os alquimistas podem executar.

A obra possui cinco capítulos, que vou chamar de receitas. A primeira receita, se chama “Os povos originários”, abrindo o caminho para a leitura. Mas, antes de servir, Carla Pernambuco, chef de cozinha, autora e apresentadora, muito bem diz que o livro é um banquete. No sentido de desfastio. “A refeição transcorreu como se, por toda a vida, eu estivesse sentada no chão para comer com nossos vizinhos e parentes.” E é assim a sensação de comer direto do caldeirão. Que também nos ensina o motivo de uma “Coivara”, que é uma técnica agrícola tradicional utilizada em comunidades quilombolas, indígenas, caiçaras e ribeirinhas no Brasil. “Quando um indígena derruba uma árvore, é para cuidar de dez.” Disse, Moacyr, onde os homens cantam para deuses e as águas amazonenses correm e atravessam vidas e comunidades repletas de sonhos.
A segunda receita, “Os povos africanos”, adentra o “Quilombo do Bixiga”, o Bixiga não branco e não italiano, do Bixiga-Bixiga mesmo, apresentando a Benedita e também palavras em Yorubá. Uzoma, rodas de capoeira, benzeção de dona Odeta, benzedera dos negros de sua comunidade. Mostra um Bixiga que originou as festas da Vai-Vai, que me remeteu ao livro “Como funciona a música”, de David Byrne, no capítulo “Somos todos africanos” — “onde as pessoas podem se espalhar e dançar, e o resultado dos ritmos complexos e cheios de camadas típicos desse estilo não vira uma maçaroca sonora”. Tem muito som no Bixiga, mesmo sem descrever. “Colocava as crianças para enfeitar os postes com bandeirolas, fazia concurso do melhor ensopado de peixe, servia canja e canjica, tudo de graça para toda a comunidade.”
A terceira receita capitulesca do Caldeirão: “O sagrado e o profano”, salgados e quitutes de primeira linha com champagne para bebericar. É hora de beber o morto. Já no “Eny’s bar”, os melhores maridos são viciados em doces. “Os outros são viciados em álcool.” Em uma sexta-feira santa esquecida por Deus, o Capão Redondo se faz calamitosamente presente. Assim também é “A padaria de dona Mariquita”. Onde as receitas precisam (e muito) da “Arte de alimentar homens e Orixás”. Os textos de Staut fazem companhia. E nos obriga a seguir os seus passos, sentir os cheiros dos lugares. Os personagens estão perto da gente e são como velhos conhecidos. Íntimos.
Então, o penúltimo capítulo é brutalista quando trata das misérias impostas pelas guerras ou pelo racismo brasileiro. “Da Colômbia para o Brasil de ônibus, barco, avião e a pé.” Estamos em terra de imigrantes. Do La Casserole. Na praça Carlos Gomes, conversando com o professor Kikuchi, que curou o presidente Lula do câncer. Na foto com Gilberto Gil. “Kikuchi costumava dizer que comida é remédio.” Será que os portugueses sabiam disso? “Os primeiros registros portugueses sobre o inhame brasileiro referem-se visivelmente à mandioca como alimento regular, obrigatório, indispensável aos nativos recém-vindos.” Antes da lenda, claro.
Ainda não sabemos do futuro, mas é ele quem encerra o “Caldeirão” e expõe uma realidade não tão ficcional assim. Estamos em Manaus, ano 2223, INPA — Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, 22 de setembro, onde descobriu-se um sítio arqueológico em Campo Maior, Piauí. O que vem depois do horizonte é a realidade dos graus celsius atuais. “A construção das estradas avança. A fome aumenta no país” inventamos todos uma deliciosa sopa de pedra. Sem fastio.
Nesse encaminhamento, entretanto, os ingredientes que compõem “O Caldeirão da Velha Chica e Outras Histórias Brasileiras” são cultivados e colhidos em um Brasil profundo, atento e não hermético, que dão água na boca e, muitas vezes, embrulham o estômago. Já o futuro só poderá ser desvendado pela alquimia, porque a fome é forte, forte como quem come.