Premiado em Cannes, filme brasileiro com Fernanda Montenegro, baseado em livro de Martha Batalha, está na Netflix Divulgação / Vitrine Filmes

Premiado em Cannes, filme brasileiro com Fernanda Montenegro, baseado em livro de Martha Batalha, está na Netflix

No efervescente cenário do Rio de Janeiro nos anos 1950, onde os destinos femininos eram frequentemente traçados à revelia de seus próprios desejos, “A Vida Invisível” é como um relato cortante sobre silenciamento, separação e resistência. Karim Aïnouz transforma a história de duas irmãs, Eurídice e Guida, em uma experiência que extrapola o melodrama e se torna um retrato vívido da opressão patriarcal e da irreversibilidade de certos desencontros. A narrativa não se contenta em apenas contar a tragédia dessas mulheres; ela a esculpe com precisão, explorando nuances emocionais e visuais que potencializam a força de sua denúncia.

Desde os primeiros enquadramentos, o filme compõe um painel sensorial que mergulha o espectador na atmosfera nostálgica e, ao mesmo tempo, asfixiante da época. A reconstituição detalhada dos espaços, os figurinos meticulosamente trabalhados e a iluminação que oscila entre o sonho e a desilusão conferem uma materialidade ímpar à história. Aïnouz conduz a câmera como quem desvenda um segredo doloroso, transitando entre momentos de ternura e brutalidade com uma fluidez que amplifica a tragédia em curso.

Eurídice e Guida compartilham um vínculo que transcende palavras, um elo que deveria resistir ao tempo e às convenções sociais. No entanto, o destino das duas é cruelmente moldado pela tirania paterna: quando Guida se entrega a um romance impulsivo com um marinheiro grego e decide fugir, retorna apenas para ser sumariamente rejeitada e apagada da vida da irmã. Eurídice, por sua vez, é condenada à ignorância do paradeiro de Guida, seguindo um caminho de conformismo e frustração em um casamento que a priva da liberdade pela qual ansiava.

A decisão narrativa de estruturar o elo entre as irmãs por meio de cartas que nunca chegam ao seu destino confere ao filme uma camada adicional de melancolia. As palavras de Guida, carregadas de saudade e esperança, tornam-se ecos de uma presença fantasmagórica, um testemunho mudo da injustiça que as separou. Não há grandes reviravoltas, nem a promessa de um reencontro reparador. O que resta é a solidão de duas trajetórias mutiladas pelo machismo estrutural e pela imposição de um destino implacável.

O impacto emocional da história é amplificado pela escolha estética e pela entrega visceral do elenco. Julia Stockler e Carol Duarte emprestam uma humanidade arrebatadora às protagonistas, enquanto Fernanda Montenegro, em sua breve, mas devastadora aparição, expressa no rosto a dor de uma vida reduzida a vestígios. A cena final, longe de oferecer qualquer espécie de consolo, ressoa como um golpe seco, reforçando o caráter inexorável da perda e da invisibilidade imposta a tantas mulheres ao longo da história.

“A Vida Invisível” não é um mero drama familiar; ele é um manifesto silencioso contra as estruturas que condenaram incontáveis mulheres ao esquecimento e à renúncia. Seu desfecho, sem concessões, transforma a ausência em testemunho e a dor em memória, consolidando-se como um dos mais impactantes filmes brasileiros da contemporaneidade. A tragédia aqui não é apenas pessoal, mas social, e sua denúncia, embora sutil, ecoa de maneira irrefutável. Uma obra que não apenas emociona, mas serve como um lembrete incômodo e necessário sobre o preço da opressão.

Filme: A Vida Invisível
Diretor: Karim Aïnouz
Ano: 2019
Gênero: Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★