Em tempos de blockbusters sobrecarregados de efeitos digitais, multiversos exaustivos e roteiros que mais parecem testes de resistência para o espectador, “O Dublê” não propõe uma ruptura — propõe um respiro. Dirigido por David Leitch, um ex-dublê que literalmente construiu sua carreira levando tombos pelos outros, o filme de 2024 é uma celebração daquilo que o cinema de ação parecia ter esquecido: o prazer simples de ver alguém fazer algo perigoso, engraçado e absurdamente humano. Inspirado na série “Duro na Queda” (1981–1986), “O Dublê” transforma o esquecido profissional dos bastidores em protagonista de uma história que mescla romance, metalinguagem, pancadaria e humor com uma leveza rara no cenário atual.
A abertura já diz a que veio: um plano-sequência acompanha Colt Seavers, vivido com carisma sob medida por Ryan Gosling, enquanto ele se prepara para mais uma acrobacia insana em um set de filmagem. Mas o salto dá errado, e ele some de cena por dezoito meses. Quando retorna, é como manobrista em um restaurante qualquer. Até que recebe um chamado inusitado: Jody Moreno (Emily Blunt), ex-namorada e agora diretora de cinema, precisa de um dublê. Mais do que a chance de trabalhar, é a oportunidade de recuperar o amor perdido — e, talvez, a própria dignidade. A trama se estrutura então como uma metacomédia romântica em que a ficção dentro do filme reflete o melodrama fora dele, costurada por referências que transitam de “Um Lugar Chamado Notting Hill” a Taylor Swift, sem perder o foco na ação de verdade — aquela que exige corpo, risco e precisão.
David Leitch não apenas conhece o universo que retrata; ele o viveu. Ao contrário de diretores que operam no terreno da simulação, Leitch coreografa cenas com a experiência de quem já sentiu o impacto. Essa autenticidade se traduz em sequências como a luta em uma caçamba giratória, a perseguição de carros com capotamento recorde e o confronto em um apartamento devastado por uma vilã armada com espada — momentos que, mesmo coreografados à exaustão, preservam o frescor de algo que poderia dar errado. Há ironia, claro: um personagem narcisista, vivido por Aaron Taylor-Johnson, mente descaradamente sobre fazer suas próprias acrobacias, numa paródia leve a astros reais. Mas também há reverência: os dublês, afinal, são os que tornam a ilusão possível.
O roteiro de Drew Pearce oscila entre o afiado e o excessivo. Em alguns momentos, a metalinguagem funciona como comentário pertinente sobre a indústria; em outros, força piadas internas que soam menos naturais. Ainda assim, há uma compreensão clara do que se quer construir: não apenas uma homenagem ao cinema de ação físico, mas também um retrato das camadas que existem entre quem faz e quem finge fazer. A cena em que Jody descreve o roteiro do próprio filme — um romance sci-fi entre um cowboy espacial e uma princesa alienígena — é ao mesmo tempo crítica, deboche e confissão. É ali que Emily Blunt revela toda sua versatilidade: Jody é diretora, ex-namorada, mulher ferida e profissional irretocável, tudo ao mesmo tempo, sem perder o controle do set ou da narrativa.
Gosling, por sua vez, acerta ao abandonar o herói estoico e abraçar o ridículo. Ele transita do homem seguro de si ao bobalhão vulnerável com graça milimétrica, num registro que remete ao seu desempenho em “Dois Caras Legais”, mas agora com mais melancolia. É essa disposição ao descontrole que torna “O Dublê” tão irresistível: a disposição de rir de si mesmo enquanto cai de cabeça. A participação de Hannah Waddingham como a produtora inglesa que grita e manda em tudo, e de Winston Duke como um técnico versátil e espirituoso, completa um elenco que entende a proposta e entrega energia sem parecer artificial.
“O Dublê” funciona porque não tenta disfarçar sua intenção. Quer ser divertido — e é. Quer ser físico — e é. Quer ser romântico, irônico, nostálgico e pop — e é. Ao final, quando uma sequência de bastidores revela Gosling (ou seu dublê) fazendo suas próprias cenas, o filme não está tentando provar nada. Está, na verdade, reafirmando um pacto: o cinema ainda pode ser feito de suor, confiança e timing. E quando isso acontece com clareza, mesmo a mais calculada das ilusões se torna, paradoxalmente, a verdade mais honesta que Hollywood ainda pode oferecer.
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