Um filme que parece abraço, conversa boa e saudade de quem você nem conheceu — está na Netflix Divulgação / Pandastorm Pictures

Um filme que parece abraço, conversa boa e saudade de quem você nem conheceu — está na Netflix

Comédia romântica costuma ser um gênero previsível — um ponto de encontro entre fórmulas gastas e zonas de conforto. “Nuestros Amantes”, de Miguel Ángel Lamata, parte exatamente dessa premissa para depois abandoná-la com certa elegância. O que começa como mais uma história entre duas figuras feridas que decidem brincar com a ideia de não se apaixonar, transforma-se lentamente em uma reflexão não apenas sobre o amor, mas sobre identidade, projeção, linguagem e a fantasia do controle emocional. Lamata, conhecido por suas comédias ruidosas como “Isi & Disi (Alto voltaje)”, depura seu estilo neste filme de 2016 e entrega algo mais contido — ainda que imperfeito —, no qual o silêncio, a ironia e a palavra tentam ocupar o espaço que antes era dominado pelo ruído.

Carlos e Irene, interpretados com química sensível por Eduardo Noriega e Michelle Jenner, são dois desconhecidos que se encontram em uma livraria-café e iniciam um jogo: encontros sem identidade, sem redes sociais, sem perguntas e, acima de tudo, sem se apaixonar. Como se a imposição da regra fosse capaz de barrar o que sempre escapa. Irene está emocionalmente partida, recém-saída de um relacionamento com um poeta enigmático. Carlos carrega o desgaste invisível de um casamento em suspensão, onde a ausência da esposa é justificada por aquele clichê disfarçado de autoanálise: “preciso pensar no que quero”. Entre uma conversa e outra, entre evasivas, provocações e silêncios ensaiados, os dois encontram um no outro aquilo que nem sabiam mais procurar: a vontade de se reconhecer no olhar de alguém.

A estrutura narrativa de “Nuestros Amantes” evita a progressão dramática tradicional. O filme se constrói em diálogos — longos, densos, a princípio quase afetados, mas aos poucos decantados em uma cumplicidade crível. Lamata abandona os arquétipos fáceis e, mesmo flertando com certo pedantismo em suas referências a Bukowski, Capote ou Truffaut, consegue escapar da armadilha ao apostar no tom sutil e autoirônico que permeia toda a construção. Os personagens não falam como pessoas comuns — e o filme não tenta esconder isso. Ao contrário, trata-se de um jogo entre linguagem e afeto, em que o que é dito é menos importante do que o que se evita dizer.

Talvez o gesto mais interessante de Lamata esteja justamente aí: em tensionar os limites do gênero sem necessidade de reinventá-lo. Ao contrário do que propõem muitas narrativas contemporâneas, “Nuestros Amantes” não tem pressa em surpreender. Ele aposta no previsível para, a partir dele, sondar zonas menos óbvias: o desconforto do reencontro com o ex, a humilhação discreta de ser deixado por alguém que ainda se ama, a vergonha silenciosa de se anular em nome da estabilidade. Quando Carlos reencontra sua esposa, e ela manifesta arrependimento, o conflito deixa de ser “quem fica com quem” e passa a ser “quem sou eu diante do que sobrou de mim?”. Irene, por sua vez, precisa aprender a amar sem o verniz de intensidade poética, e isso exige dela uma entrega muito mais difícil: ser real.

A fotografia aposta em cores suaves e em planos abertos dos cenários aragoneses, que funcionam menos como paisagem e mais como respiro. A cidade, embora bela, nunca rouba a cena: ela apenas acompanha. O foco é o rosto dos personagens, seus gestos contidos, os microtempos entre uma frase e outra. Lamata compreende que o espaço entre duas falas pode ser tão significativo quanto a fala em si — e é ali, no intervalo, que o afeto se revela. Quando o roteiro arrisca o humor, ele surge sem esforço: não como piada ensaiada, mas como respiração dentro do drama. E é nesse equilíbrio entre graça e ferida que o filme encontra seu melhor lugar.

Há também uma metalinguagem discreta, mas eficaz. Carlos é roteirista, e seu bloqueio criativo é menos um problema profissional do que um sintoma existencial. Ele se perdeu de si. Escrever, aqui, é uma metáfora transparente: é o modo como ele tenta reorganizar o mundo depois da ruína. Irene, com seu jogo, funciona como catalisadora desse reencontro — mas não como musa. Ela própria está em destroços, e sua vitalidade performada é, ao mesmo tempo, tentativa e defesa. O filme não tenta mascarar essas rachaduras; ao contrário, caminha sobre elas com cuidado e inteligência.

Michelle Jenner se entrega a uma personagem que poderia ser irritante — a mulher carismática demais, excêntrica na medida certa, ferida mas forte — e a transforma em alguém plausível. Há humor, sim, mas também neuroses reais, gestos quebrados, uma tristeza que vaza pelas frestas. Noriega, por sua vez, veste Carlos com um cansaço elegante. Não há sofrimento performático, apenas o peso de anos desperdiçados tentando cumprir papéis escritos por outras mãos. E é nesse ponto que o filme talvez seja mais contundente: “Nuestros Amantes” fala, em última instância, sobre roteiros. Não os de cinema, mas os da vida — os scripts relacionais que aceitamos interpretar por medo de reescrever a própria história.

Ao evitar a pressa e preferir o caminho do afeto elaborado, o filme entrega algo raro: a sensação de que, por mais conhecida que seja a estrada, o modo como se caminha pode renovar o destino. E se Carlos e Irene quebram a regra de não se apaixonar, é menos por impulso do coração do que por necessidade de existir com inteireza diante do outro. Talvez seja justamente nisso que reside a beleza silenciosa de “Nuestros Amantes”: um filme que não quer impressionar — quer tocar. E o faz com a calma de quem sabe que os sentimentos mais autênticos não precisam de efeitos especiais. Precisam apenas de espaço.

Filme: Nuestros Amantes
Diretor: Miguel Ángel Lamata
Ano: 2016
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★