Acaba de chegar ao Prime Video o filme que venceu o Oscar 2025. E que permanece com você Divulgação / Synapse Distribution

Acaba de chegar ao Prime Video o filme que venceu o Oscar 2025. E que permanece com você

Poucas obras têm coragem de olhar nos olhos de um abismo histórico e permanecer ali, fixas, mesmo quando o tempo conspira pelo esquecimento. O que Yuval Abraham, Basel Adra, Hamdan Ballal e Rachel Szor constroem é mais do que uma denúncia: trata-se de um gesto de resistência fílmica contra a amnésia global que protege os horrores diários da ocupação israelense na Cisjordânia. O que se vê não é um panorama, mas uma cratera aberta, onde o som do passado não ecoa — ele grita. O quarteto documenta, com fúria contida e precisão cirúrgica, a vida encurralada de milhares de palestinos em uma zona transformada em campo de treinamento militar, onde o conceito de lar se dissolve entre escombros e decretos.

A natureza hermética da guerra, frequentemente traduzida em números e mapas, aqui ganha carne, respiração e ruído. Não há qualquer tentativa de empacotar o sofrimento em moldes palatáveis — o que se exibe é o insuportável. O filme não suaviza; insiste. O terreno ocupado por dezenove aldeias palestinas é mostrado como território não apenas em disputa, mas em extermínio simbólico e material, onde o Estado israelense opera com uma máquina que vai da burocracia até os canhões. Os diretores não se refugiam na neutralidade covarde: tomam posição ao registrar a repetição de um ciclo que dispensa grandes batalhas para se manter — basta o desprezo rotineiro por vidas consideradas descartáveis.

A brutalidade documentada não se encerra nos episódios de destruição física. Ela se insinua também nas cenas de silêncio, na persistência de vozes que já não esperam por justiça, mas apenas por alguma interrupção da violência. A escavadeira que avança sobre o casebre ainda ocupado, sob gritos inúteis, revela a lógica do absurdo: há um soldado que diz não se importar, pois tem licença para matar. E o horror está justamente aí — não no gesto isolado, mas na naturalização da crueldade. A banalidade do mal, que tanto inquietou Hannah Arendt, aqui se manifesta de forma nua: operários da violência seguem ordens sem hesitação, mesmo que o resultado seja a ruína de uma infância ou a morte de um parente.

A obra não se furta à menção dos ataques do Hamas à Faixa de Gaza em outubro de 2023, e o faz de modo que não haja ilusões quanto à complexidade do conflito. Ainda assim, o foco não escapa: trata-se da crônica de uma terra sitiada por um projeto de ocupação contínua, onde cessar-fogos não significam trégua, mas pausa estratégica. O filme alinha seu discurso à dor acumulada, e não à diplomacia inócua. Ao entrelaçar registros íntimos com imagens de destruição sistemática, a narrativa desconstrói qualquer pretensão de equilíbrio jornalístico e aposta na verdade que sangra — a que vem de dentro.

Há um vigor particular em saber que Basel Adra, um dos diretores, nasceu e cresceu nesse mesmo chão instável. Sua câmera não busca distância: ela se incrusta nos fragmentos do que resta. O olhar compartilhado com Yuval Abraham carrega o peso de uma convivência possível — e, por isso mesmo, politicamente potente. Ao documentar a barbárie com precisão quase cruel, os cineastas nos obrigam a ver, não de longe, mas de dentro, como se o colapso de cada parede atingisse algo em nós. Quando o tanque passa por cima dos escombros ou quando a morte se exibe crua em tela, não se trata de espetáculo, mas de convocação.

O assassinato final, captado com frieza involuntária, encerra o filme sem catarse. Não há consolo, esperança ou reconstrução em vista. Apenas a insistência de uma câmera que se recusa a desviar o olhar. É essa recusa que transforma o filme em uma afronta — não apenas ao Estado de Israel, mas também à cumplicidade global que assiste em silêncio. Trata-se de um documento sem concessões, um corte profundo em qualquer expectativa de diplomacia narrativa. No final, não há síntese possível, nem desejo de reconciliação: apenas o registro de uma persistência dolorosa, insuportável, necessária.

Filme: Sem Chão
Diretor: Yuval Abraham, Basel Adra, Hamdan Ballal e Rachel Szor
Ano: 2024
Gênero: Documentário
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★