5 dias. Zero cortes. Milhões de fãs. A série que está sendo chamada de a melhor do ano chegou à Netflix Divulgação / Netflix

5 dias. Zero cortes. Milhões de fãs. A série que está sendo chamada de a melhor do ano chegou à Netflix

“Não deixei herdeiros; poupei qualquer criatura de perpetuar nossa ruína.” Com essa frase lapidar, Machado de Assis desarma qualquer ilusão sentimental no desfecho de “Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)”. Há nela um gesto quase revolucionário: a recusa do imperativo biológico que, para muitos, define o que é uma vida plena. Entre os que veem nos filhos a confirmação da experiência humana, e os que suspeitam da continuidade como armadilha, há um abismo difícil de atravessar — sobretudo quando o tempo em que vivemos insiste em nos mostrar que a prole nem sempre é bálsamo. E se, ao invés de alívio, ela for a faísca do colapso?

É possível que os mesmos pais que se desdobram em zelo, convencidos de que amar é abrir portas e sustentar sonhos, terminem criando tiranos em miniatura, dispostos a incendiar o mundo — e, se preciso for, a destruir quem os gerou. A fronteira entre ternura e tragédia, nesse contexto, é tão tênue quanto desesperadora. Alguns casos extremos nos deixam paralisados, e não pela brutalidade em si, mas pelo fato de que a violência foi gerada dentro de casa. São essas as inquietações que se espraiam por “Adolescência”, minissérie britânica da Netflix que vem sendo aclamada com entusiasmo, nem sempre moderado, mas que merece ser considerada com atenção crítica mais aguçada. Mais que uma narrativa policial, ela interroga os alicerces da educação, da culpa e da nossa incapacidade de compreender o que se esconde por trás de um rosto infantil.

Yorkshire acorda sob a falsa calmaria de uma manhã comum. Em pouco tempo, a polícia local autoriza o detetive Luke Bascombe a liderar uma operação que culmina na prisão de Jamie, um garoto de treze anos acusado de assassinar uma colega. O crime — que poderia ser apenas mais um entre tantos — torna-se o epicentro de uma história que avança com a precisão de um bisturi. Os criadores Jack Thorne e Stephen Graham costuram um enredo que sabota expectativas fáceis, e Philip Barantini, à frente da direção, opta por planos longos e lentes intrusivas, aproximando o espectador de um realismo que incomoda. Aqui, cada silêncio pesa, cada olhar carrega o eco do irreversível.

O interrogatório conduzido por Bascombe (Ashley Walters, contido e brutal na medida exata) é montado como um jogo de xadrez em câmara lenta. Jamie, pálido e esquivo, recorre a negativas evasivas e silêncios jurídicos, como se quisesse adiar ao máximo a chegada do irremediável. Mas a tensão cresce. A reviravolta não está no que se revela, mas na forma como se revela: imagens de segurança são exibidas, e nelas, o garoto aparece seguindo a vítima até um estacionamento, onde a ataca com uma faca. A brutalidade é seca, sem trilha sonora ou embelezamento. A frieza da exposição tem o peso de uma sentença — e não apenas judicial.

Difícil não recordar “Precisamos Falar Sobre o Kevin” (2011), obra que também rasgou convenções ao expor o horror doméstico em estado cru. No entanto, “Adolescência” caminha por um terreno mais emocionalmente desidratado. Sua força está na contenção: os personagens não explodem, implodem. O luto, aqui, é narrado em tempo real, e nada parece encenado. O drama é tanto mais angustiante quanto mais verossímil: não há exagero, não há caricatura. Apenas a derrocada silenciosa de uma família que, sem aviso, foi empurrada para o epicentro de um trauma irredimível.

Stephen Graham entrega um Eddie de camadas espessas — frágil, culpado, atônito — que se arrasta entre a perplexidade e a ira. Mas é Owen Cooper, no papel de Jamie, quem confere à série sua alma mais ambígua. Com um domínio desconcertante, ele alterna entre fragilidade e ameaça, vítima e algoz, evocando compaixão e repulsa em igual medida. Seu desempenho não se limita a emocionar; ele desconcerta, sugere lacunas, obriga o espectador a ocupar o espaço incômodo do julgamento. A verdadeira joia, no entanto, está na cena final: um diálogo entre Eddie e Manda (a excepcional Christine Tremarco), no qual os dois partilham a dor de ter perdido a filha e, ao mesmo tempo, o filho — cada um à sua maneira. Não há catarse. Só um tipo peculiar de esgotamento, mais próximo da resignação do que da aceitação.

Diante disso, é inevitável retornar à pergunta inicial: o que nos leva a desejar filhos? Amor, legado, sentido? Ou apenas a repetição de um script social que raramente admite questionamento? O que “Adolescência” escancara é que, por mais que a genética nos una, a identidade — essa alquimia instável de afetos, ausências e impulsos — escapa ao nosso controle. E quando o abismo finalmente se revela, já não há mais como fingir que criamos alguém: apenas convivemos, por tempo limitado, com um desconhecido.


Série: Adolescência
Criação: Stephen Graham e Jack Thorne
Direção: Philip Barantini
Ano: 2025
Gêneros: Drama/Crime 
Nota: 9/10