Num gênero saturado por fórmulas e efeitos pré-programados, poucas franquias sustentam com alguma dignidade o peso do tempo. A que nasceu das inquietações de Gene Roddenberry resiste — não por milagre, mas por ter sido concebida como uma ideia maleável, inquieta, quase filosófica em sua ambição de refletir sobre o futuro. “Star Trek: Sem Fronteiras”, sob a batuta de Justin Lin, opta por retomar essa tradição com um filtro de velocidade e brilho superficial, sem ignorar por completo o legado que o precede. Há aqui um jogo delicado entre o impulso da renovação e o dever de manter viva uma chama — menos como homenagem, mais como método de continuidade. E é justamente nessa tensão que o filme revela sua natureza contraditória: ancorado em um passado que admira, mas inquieto em buscar relevância para um presente cada vez mais cético.
Em vez de reinventar a roda, o roteiro de Simon Pegg e Doug Jung prefere deslocá-la para um terreno já conhecido. O cenário é o ano de 2263, quando a Enterprise de Kirk e companhia se vê diante de uma ameaça que, se não é nova em essência, ao menos carrega um verniz de complexidade. O antagonista, Krall, interpretado por Idris Elba com uma ambiguidade bem dosada, destoa do maniqueísmo usual e encarna uma figura ambivalente: produto de uma guerra mal digerida e de uma Federação que, aos olhos dele, traiu seus próprios preceitos. Essa sutileza não é acidental. O filme, mesmo com sua cadência de blockbuster, flerta com dilemas éticos e identitários, embora sem a profundidade filosófica que um episódio clássico do seriado ousaria explorar com mais parcimônia. A aventura é constante, mas o silêncio entre as explosões sugere mais do que o roteiro se permite dizer em voz alta.
Nesse cenário, o embate entre Kirk e Spock é deixado em segundo plano, como se Lin compreendesse que repetir aquela dinâmica seria insistir em uma zona de conforto exaurida. Em vez disso, abre-se espaço para coadjuvantes que finalmente recebem a atenção que merecem — caso do Dr. McCoy de Karl Urban, que traz uma crueza melancólica ao personagem, ou de Scotty, vivido com precisão cômica pelo próprio Pegg, que opera como válvula de escape sem jamais descambar para a autocaricatura. O elenco, aliás, equilibra com cuidado o respeito pelos intérpretes originais e a liberdade para reinventar nuances, fugindo da tentação da mera imitação. Há, nisso, um senso de responsabilidade que torna o filme mais honesto do que se poderia esperar num produto ancorado em mitologias tão carregadas.
A direção de Lin, marcada por sua experiência em franquias de ação, garante fluidez e ritmo, ainda que em alguns momentos se renda à espetacularização vazia. No entanto, mesmo quando exagera, há método: as sequências de batalha não atropelam o que de fato interessa — a ideia de uma tripulação unida não por afeto espontâneo, mas por convívio forjado na adversidade. A composição sonora de Michael Giacchino amplifica esse efeito com rara inteligência, não apenas porque pontua os momentos decisivos, mas porque é capaz de traduzir a oscilação entre o épico e o íntimo, entre o perigo e a memória. O que se ouve, às vezes, diz mais do que o que se vê — e isso, no cinema popular atual, é uma ousadia.
Mais do que um episódio estendido ou um artefato nostálgico, “Sem Fronteiras” funciona como um espelho do que “Star Trek” se tornou: uma ideia que não se deixa aprisionar por sua própria história, mas que também não a renega. O gesto de homenagear Leonard Nimoy e Anton Yelchin não é apenas simbólico — é o reconhecimento de que o tempo passou, e que os personagens agora pertencem tanto ao público quanto ao imaginário coletivo que os sustenta. Não há inovação radical, tampouco revisionismo gratuito. O que há é um esforço legítimo de escutar o que ainda vibra sob as superfícies conhecidas, de traduzir uma tradição para uma audiência que não precisa de reverência, mas de sinceridade.
Ao final, permanece a pergunta que sempre impulsionou a saga: o que há além? “Sem Fronteiras” responde com ambiguidade — não com a ousadia de quem quer romper limites, mas com a sabedoria de quem aprendeu a respeitá-los antes de questioná-los. E talvez seja justamente essa a sua contribuição mais valiosa: lembrar que o espaço a ser explorado não é apenas o sideral, mas aquele entre o que já se disse e o que ainda falta entender.
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