Em um terreno saturado por reciclagens narrativas, “Além da Escuridão” não propõe uma expansão criativa do universo de “Star Trek”, mas uma réplica polida e tecnologicamente incrementada do que já foi concebido em tempos mais inventivos. J. J. Abrams, amparado por uma indústria que privilegia a nostalgia lucrativa, reconfigura com fidelidade reverente o espírito da série original — exibida entre 1966 e 1969 — sem jamais ameaçar as convenções que a tornaram símbolo. A estética brilhante, os efeitos impecáveis e os acenos constantes aos episódios canônicos revelam uma intenção menos autoral do que curatorial. Trata-se de preservar com verniz futurista uma herança que, apesar da roupagem nova, parece desconfortável ao abandonar seu tempo.
Diferentemente de Gene Roddenberry, cuja ficção especulativa se equilibrava entre ousadia científica e inquietação filosófica, o trio de roteiristas composto por Alex Kurtzman, Damon Lindelof e Roberto Orci parece confinado por uma necessidade quase burocrática de respeitar o material de origem. A aventura concebida não busca novos caminhos, mas apenas os mais seguros. A liberdade de extrapolar leis naturais, hipótese recorrente nas tramas originais, cede espaço a um enredo que se sabota na previsibilidade. Falta ambição e, principalmente, confiança para tensionar os limites do universo proposto — como se toda ruptura fosse uma traição.
Ainda assim, é nas interpretações de Chris Pine e Zachary Quinto que o longa encontra sua respiração autêntica. Longe da mímica rasa, ambos compreendem o que significa reinterpretar ícones: não imitá-los, mas reencarná-los sob luz contemporânea. Kirk e Spock surgem redesenhados por conflitos mais internos do que externos, mais complexos do que caricatos. E é justamente nessa recriação emocional — muitas vezes dissonante do tom original — que o filme ganha densidade. A sequência inicial, situada num planeta tingido por um vermelho opressivo, não apenas abre caminho para o enredo, mas simboliza o descompasso entre o passado reverenciado e o presente que tenta afirmar-se sem convicção plena.
Abrams não se furta à ironia autoconsciente nem às provocações sutis, inserindo diálogos com camadas interpretativas entre as trocas entre Kirk e Spock, inclusive sugerindo leituras neurodivergentes da personalidade do vulcano — hipótese que, embora anacrônica à série clássica, conversa com a sensibilidade atual. As passagens visuais e simbólicas, ainda que exuberantes, por vezes soam como distrações elegantes diante de um conflito central que demora a amadurecer. Zoe Saldana, como Uhura, participa desse jogo emocional com uma presença que tenta escapar dos estereótipos, mas se vê constrangida por um roteiro que prefere a evocação ao risco.
A Londres e a São Francisco do século 23 servem de pano de fundo para um mundo onde a vigilância tornou-se um instinto civilizatório. Não há mais espaço para dissenso espontâneo — há apenas brechas toleradas. Jim e Spock, nesse cenário, assumem funções quase judiciais, decidindo o que merece vir à tona. A inserção do comandante Pike, vivido por Bruce Greenwood, desloca a trama para um campo mais ético, questionando vínculos de lealdade e responsabilidades herdadas. É nesse arco paralelo, menos espetacular e mais introspectivo, que o filme começa a encontrar uma voz distinta.
Mas é com a entrada definitiva de Benedict Cumberbatch, encarnando Khan, que “Além da Escuridão” abandona o piloto automático. Seu antagonismo não reside na brutalidade, mas na precisão com que expõe as contradições morais da Federação. Sua presença reorganiza os eixos de poder e questiona o heroísmo fabricado ao longo da jornada. Até então, a Enterprise flutuava entre saudosismo e espetáculo; com Khan, ela despenca em um dilema de peso. A promessa, finalmente, é cumprida — não com respostas, mas com desconfortos que persistem mesmo depois do último embate.
★★★★★★★★★★