Há algum tempo, Pedro Almodóvar é o novo príncipe do melodrama. O epíteto, conquistado por Douglas Sirk (1897-1987), tem servido ao espanhol desde que o diretor encontrou o veio inesgotável das histórias de mães e filhos, e essa sua marca registrada nunca mais saiu do radar da crítica e do público. É necessário paciência para gostar de Almodóvar, uma paciência de anos, e assim mesmo nem todos conseguem se identificar com sua obra. Karim Aïnouz vai trilhando caminho semelhante ao dos dois diretores e se sai muito bem quando desacelera e apresenta trabalhos como “A Vida Invisível”, sobre temas do passado, mas, lamentavelmente, ainda atuais.
Cada vez mais dinâmico, Aïnouz, um fenômeno desde “Madame Satã” (2002), seu primeiro longa, enveredou pelo regionalismo em “O Céu de Suely” (2008) e “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo” (2009), este em parceria com Marcelo Gomes; quebrou tabus com “Praia do Futuro” (2014); e seguiu firme nas veredas densas da sexualidade humana no ótimo “Motel Destino” (2024). A exemplo do que se assiste em “O Jogo da Rainha” (2023), sua primeira produção internacional, em “Vida Invisível” o diretor leva o público por uma longa jornada pela vida de uma mulher em busca de autonomia e identidade, mas presa em convenções, até libertar-se do jeito mais brutal.
Se conhecêssemos a intimidade uns dos outros, ninguém mais se cumprimentaria. Naturalmente, a frase, uma das mais certeiras do grande Nelson Rodrigues (1912-1980) não mirava apenas os hábitos sexuais; no entanto, é impossível não se completar seu pensamento com uma referência explícita ao que se faz — e, mais importante, ao que se deixa de fazer — na horizontal. Adaptado de “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” (2016), da escritora e jornalista recifense Martha Batalha, o roteiro de Inés Bortagaray e Murilo Hauser investiga as origens do patriarcalismo à brasileira, mais precisamente o do Rio de Janeiro dos anos 1950, encarnado por Eurídice e Guida Gusmão, duas jovens irmãs separadas depois de um infortúnio.
Eurídice deseja tornar-se uma pianista de concerto, Guida só quer fazer as descobertas que julga aprazíveis, mas nenhuma das duas vai além do sonho, reprimidas por um pai autoritário. Numa das melhores cenas, Guida volta a uma experiência recente com um marinheiro, relatada a Eurídice num misto de frenesi e medo, até que as moças são chamadas à mesa do jantar, onde fazem sala para futuros pretendentes. Carol Duarte e Julia Stockler captam a emoção oculta de personagens tão distantes de sua realidade, especialmente quando Guida foge com um namorado para a Grécia e regressa pouco tempo depois, solteira e grávida. Já não há espaço para ela na casa ou na família, e para que não arruíne também o futuro da irmã, dizem-lhe que Eurídice partiu para Viena estudar música.
O que acontece na sequência com Guida — e com Eurídice, cuja mão é concedida em casamento a um homem mais velho, com o qual tem uma noite de núpcias violenta — choca, mas Aïnouz conduz a narrativa de maneira a provocar não apenas estranhamento, mas reflexão. A fotografia de Hélène Louvart, uma assídua colaboradora de Agnès Varda (1928-2019) e Claire Denis, remove o verniz de um possível glamour retrô, transmitindo uma mensagem clara, um jogode sombras e luzes que é a história mesma de Eurídice e Guida ao longo dos anos.
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