Existe um tipo específico de ícone cultural que, mesmo quando silenciado, nunca está realmente calado. A Barbie, talvez o artefato simbólico mais longevo do século 20, é esse tipo de presença espectral: ela habita os quartos das infâncias passadas, os protestos feministas, os relatórios de marketing e, agora, o centro de um dos filmes mais provocadores já articulados sob o pretexto de um blockbuster. Em “Barbie”, Greta Gerwig decide enfrentar o dilema de uma figura saturada de significados — a boneca que serviu tanto para empoderar quanto para oprimir, tanto para libertar quanto para padronizar. Seu gesto não é o de tentar responder à contradição, mas sim o de elevá-la a uma linguagem cinematográfica que pulsa entre o deboche, o trauma e a lucidez política. O que se vê na tela é mais do que uma sátira: é um espelho convulsivo, um território híbrido onde se negocia, com sarcasmo e seriedade, o que restou do sonho feminino depois que ele foi embalado, vendido, destruído e reciclado.
A construção de Barbielândia como um universo estético de exuberância controlada é, ao mesmo tempo, um artifício visual e uma armadilha conceitual. Sarah Greenwood, na direção de arte, e Jacqueline Durran, nos figurinos, fabricam um paraíso plástico onde o poder é rosa e a lógica é invertida: mulheres comandam tudo, e os homens orbitam em irrelevância. Essa inversão, no entanto, é apenas uma superfície — e Gerwig a sabota deliberadamente, expondo suas falhas internas. A protagonista, interpretada por Margot Robbie com precisão milimétrica, é a “Barbie estereotipada”: perfeita demais para existir, brilhante demais para se sustentar. A derrocada começa quando o desconforto se infiltra — um pensamento sobre a morte, uma rachadura no salto. A viagem para o “mundo real” é menos uma fuga do paraíso do que um mergulho na brutalidade do espelho social. O que está em jogo, no fundo, é a tentativa desesperada de reconciliar um ideal impossível com a matéria frágil da existência humana.
Ken, por sua vez, assume o papel mais subversivo da trama. Ryan Gosling empresta ao personagem um tipo de patetismo performático que, em vez de ridicularizar a masculinidade, a desnuda em sua necessidade de validação. Quando Ken descobre o patriarcado no mundo real, ele o interpreta como um manual de autoajuda emocionalmente rudimentar — caminhonetes, cavalos, poder irrestrito. Seu retorno triunfal à Barbielândia convertido em um déspota de academia expõe, com acidez, o quão pouco é necessário para que o machismo se reestruture a partir de vazios identitários. A performance de Gosling é ao mesmo tempo paródica e trágica: Ken não é um vilão, mas um subproduto emocional de um sistema que o ensinou a só existir por meio do olhar de Barbie. O filme, aqui, realiza um giro raro: não se limita a denunciar o patriarcado, mas dramatiza seu funcionamento como falência simbólica compartilhada.
A força de “Barbie” está precisamente na sua recusa em ser unívoca. A cada sequência que se permite a ironia, há outra que mergulha no existencialismo. A cena em que Barbie entra em um colégio e é confrontada com o desprezo de adolescentes que a veem como símbolo de opressão já não é apenas uma crítica à cultura de consumo, mas um retrato da erosão do sentido nos objetos culturais. O que fazer quando o brinquedo que ensinou gerações a sonhar se transforma, anos depois, em motivo de vergonha? A resposta de Gerwig não é uma apologia nem uma autodefesa, mas uma recontextualização. Ao narrar a jornada de uma boneca que busca entender o que significa ser mulher, a diretora simultaneamente revela as limitações dessa representação e recusa descartá-la como algo vazio. O paradoxo, longe de ser resolvido, é tensionado até o limite — e isso é o que o torna politicamente valioso.
Mesmo os momentos mais abertamente discursivos do filme — como o monólogo de Gloria, interpretada com sobriedade firme por America Ferrera — resistem à caricatura por estarem inseridos numa estrutura que já assumiu, desde o início, o jogo da hipérbole crítica. É verdade que o tom didático pode quebrar o ritmo em certos trechos, mas essa interrupção é parte da estratégia. Gerwig está menos interessada em contar uma história convencional do que em explorar fraturas, e isso inclui desafiar o tempo dramático clássico com pausas para explicações — incômodas, mas necessárias. Quando Gloria enumera as contradições do ser mulher, ela não está apenas pontuando a tese do filme, mas vocalizando um acúmulo geracional que por muito tempo foi estetizado demais para ser ouvido com seriedade. O momento é desconcertante justamente porque rompe com o tom de paródia e propõe, no meio da sátira, um pacto momentâneo de verdade.
Nada disso funcionaria se o filme não fosse, também, um deleite estético. E é. Gerwig entende o valor simbólico do kitsch e o reinventa como plataforma de crítica. A estética saturada, os cenários artificiais, os figurinos hipercodificados: tudo isso serve para empilhar camadas de sentido sob a superfície do entretenimento. “Barbie” é um filme que se sabe mercadoria — e se instrumentaliza como tal para alcançar algo que a publicidade nunca conseguiria: a consciência crítica da mercadoria em si. Não por acaso, a Mattel é ridicularizada e glorificada ao mesmo tempo. Seu lucro cresce, mas sua autoridade simbólica é desafiada. E Gerwig, ciente da contradição, não tenta escondê-la. Pelo contrário, a transforma em matéria narrativa, demonstrando que é possível criticar o sistema a partir de dentro — contanto que se esteja disposto a expor as costuras do jogo.
No centro de tudo isso, a pergunta permanece: quem é, afinal, a Barbie? Um simulacro de perfeição ou um campo de disputa ideológica? Um ícone esvaziado ou um contêiner de sonhos quebrados? A resposta é tão inquietante quanto o filme: ela é tudo isso ao mesmo tempo — e também o espelho que devolve ao espectador sua própria perplexidade. Em vez de oferecer uma lição de moral, “Barbie” entrega um labirinto simbólico, onde cada saída é também uma entrada para outra contradição. E ao fazê-lo, não apenas reconstrói o significado da boneca mais famosa do mundo, mas também confronta o público com uma pergunta incômoda: quantas das nossas ideias de liberdade são, na verdade, embalagens reformuladas de antigas prisões?
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