Reproduzir como produto cultural histórias que atravessam os séculos, sem prejuízo do interesse de plateias as mais incompatíveis, nunca é uma decisão fácil. A questão começa a tocar as raias da insanidade se um filme obstina-se e se alonga sobre um assunto hermético, delicado, complexo demais mesmo para aqueles que dominam o tema ou apenas sentem-se mexidos por ele. Parte de um coletivo de realizadores do Oriente Médio, Yuval Abraham, Basel Adra, Hamdan Ballal e Rachel Szor correm o risco e apresentam em “Sem Chão” uma ínfima mostra do descalabro que continuam sendo os conflitos israelo-palestinos, fixando-se numa colônia de dezenove aldeias palestinas no sul da Cisjordânia, na província de Hebron.
Nessa “zona de treinamento”, apropriada por Israel depois da Guerra dos Seis Dias, entre 5 e 10 de junho de 1967, vivem mais de três mil almas, penando ao sabor dos desmandos de governos insensíveis enquanto esperam a paz que não vem nunca. Vencedor do Oscar Melhor Documentário de Longa-metragem, “Sem Chão” é uma triste ironia sobre o desmantelamento das instituições, incapazes de fazer por seus cidadãos o que quatro cineastas fazem. E, claro, não é o suficiente.
Para Hannah Arendt (1906-1975), a capacidade de um indivíduo dito normal se sujeitar a ordens tresloucadas de um lunático e, assim, contribuir para um dos cenários mais monstruosos da História tinha a natureza de um verdadeiro enigma que, em algum grau, a fascinava. Enquanto uma escavadeira avança sobre um casebre no qual ainda estão as filhas da moradora, que grita de desespero, um soldado israelense diz que não se importa, que tem licença para matar. Os diretores-roteiristas arranham os ataques terroristas do Hamas à Faixa de Gaza, em 7 de outubro de 2023.
Conhecido entre a população local por Sábado Sangrento, o mais recente enfrentamento entre palestinos e israelenses, que culminou com a chacina imediata de 1.200 civis, e, passados dezessete meses, apesar do cessar-fogo de trinta dias acordado pelas duas partes, não aponta uma definição para daquele território sem lei na costa leste do Mar Mediterrâneo, ladeado por Egito e Israel, é apenas um capítulo breve numa saga odienta que remonta aos anos 1830. Filho de ativistas, Basel Adra cresceu em uma pequena vila em Masafer Yatta, e com o jornalista Yuval Abraham documenta o massacre, cruel e silencioso, com entrevistas e imagens, muitas e sangrentas. Em 92 minutos, são frequentes os tanques que passam por cima dos escombros, restos do que foram casas de colonos de Masafer Yatta, mas o flagra do assassinato de um primo, no último lance, é algo que retina nenhuma esquece. Uma síntese bastante adequada da barbárie, do caos e da indiferença.
★★★★★★★★★★