Obra-prima do cinema dinamarquês, baseado em livro de ganhador do Nobel da Literatura, está na Netflix Rolf Konow / Netflix

Obra-prima do cinema dinamarquês, baseado em livro de ganhador do Nobel da Literatura, está na Netflix

Nem toda produção cinematográfica se curva aos costumes que frequentemente garantem sucesso comercial. Em um cenário dominado por narrativas previsíveis, algumas obras desafiam as expectativas, oferecendo experiências que exigem engajamento intelectual e emocional. “Um Homem de Sorte”, inspirado no romance de Henrik Pontoppidan, premiado com o Nobel de Literatura em 1917, entra nessa categoria. Longe de recorrer a artifícios fáceis ou soluções conciliatórias, o filme traça um retrato complexo de um protagonista dilacerado entre fé, ambição e a busca por pertencimento. Ambientado na Dinamarca do século 19, sua história ultrapassa o drama individual e se desdobra como um painel social detalhado, evidenciando o embate entre o fundamentalismo religioso e o secularismo nascente, além das implicações culturais e políticas dessa transição.

O protagonista vem de uma família profundamente religiosa da Jutlândia, onde valores rígidos moldam os destinos. Desde cedo, ele sente o peso dessas expectativas e almeja romper com o determinismo que lhe foi imposto. Seu desejo de emancipação o leva a Copenhague, centro de inovação e pensamento progressista, onde espera construir uma nova identidade livre das amarras da tradição. Esse deslocamento, no entanto, não ocorre sem conflitos: sua genialidade lhe abre portas, mas o passado o acompanha como uma sombra. A relação que estabelece com uma mulher de espírito humanista e progressista aprofunda esse embate, tornando-a não apenas um interesse romântico, mas um reflexo das tensões internas que o consomem.

Em vez de recorrer a polarizações simplistas, a narrativa contrapõe a rigidez do cristianismo dogmático ao ambiente judaico secularizado que permeia os círculos financeiros e intelectuais da capital dinamarquesa. Esse contraste não apenas molda o destino dos personagens, mas revela fissuras de uma sociedade em transformação, antecipando conflitos que reverberariam nas décadas seguintes. A transição entre os séculos 19 e 20 foi marcada por mudanças estruturais profundas na Europa, e o longa captura essa ebulição com notável sensibilidade. O avanço do pensamento racionalista, a ascensão do nacionalismo e as disputas entre tradição e progresso não são meros cenários de fundo, mas forças ativas que impulsionam a narrativa.

A recepção ao filme dependerá da predisposição do espectador para absorver seu ritmo pausado e sua abordagem contemplativa. Aqueles que buscam uma trama guiada por resoluções rápidas e progressões dramáticas convencionais podem se frustrar. No entanto, a cadência deliberada não é um entrave, mas um recurso essencial para aprofundar a imersão na psique do protagonista e nos dilemas que enfrenta. A cinematografia meticulosa reforça essa introspecção, contrastando a austeridade da paisagem rural da Jutlândia com o dinamismo urbano de Copenhague, refletindo visualmente o conflito que impulsiona a trajetória do personagem. Da mesma forma, as atuações, de uma autenticidade irretocável, sustentam a densidade emocional da narrativa sem recorrer a excessos melodramáticos.

“Um Homem de Sorte” resgata um clássico da literatura dinamarquesa e o transporta para um público contemporâneo, preservando a universalidade de seus temas e reavivando questionamentos atemporais. A impossibilidade do protagonista de conciliar passado e futuro, fé e razão, pertencimento e liberdade dá à história um caráter inescapavelmente humano. Seus dilemas não são meros ecos do século 19, mas inquietações que ainda ecoam em qualquer época e cultura. Mesmo diante de realizações grandiosas, ele se vê incapaz de aceitar a felicidade, um desfecho que, longe de ser anticlimático, impõe uma reflexão sobre as escolhas e os fardos que cada um carrega.

Embora não tenha sido feito para capturar a atenção do grande público com fórmulas testadas, “Um Homem de Sorte” entra na categoria de filmes que permanecem na memória e fomentam debates. Sua relevância não está apenas na execução técnica primorosa ou na fidelidade ao material original, mas na maneira como nos obriga a confrontar as complexidades da existência. Para aqueles dispostos a embarcar nessa jornada, é uma experiência que ultrapassa o mero entretenimento e se firma como um testemunho essencial da condição humana.

Filme: Um Homem de Sorte
Diretor: Bille August
Ano: 2018
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★